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Um passeio encantado conduzido pela voz de Aracy de Almeida

Sambista de sucesso, intérprete de Noel e jurada rabugenta de programas de calouro, cantora nasceu e viveu no suburbano bairro carioca do Encantado

ODS 11 • Publicada em 9 de setembro de 2025 - 08:18 • Atualizada em 9 de setembro de 2025 - 10:23

Para quem foi adolescente nos anos 1970, Aracy de Almeida era aquela jurada mal humorada, debochada e ácida nas críticas (em geral, justas) que fazia aos calouros do programa Silvio Santos. Só anos depois, descobri que a dona da voz um tanto rouca naquela fase da vida, talvez pelos cigarros em excesso, era uma fabulosa intérprete de samba, responsável por tirar o amigo Noel Rosa do esquecimento, após sua morte precoce. “O Samba em Pessoa”: assim a cantora era anunciada ao começar a fazer sucesso no rádio, no fim dos anos 1930. “A Dama do Encantado” era outra forma de tratamento, usada pelas revistas, lembrando o bairro da Zona Norte carioca, onde Aracy foi criada e morou a maior parte de sua vida.

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Se os anos de samba fizeram, para mim, que o nome Aracy de Almeida passasse a ficar ligado a cantora de sucesso e intérprete de Noel, sua conexão com o Encantado não estava no meu mapa afetivo do Rio de Janeiro. Mas, agora em agosto, a Livraria e Edições Folha Seca – a mais carioca das livrarias na mais carioca das ruas, a Ouvidor – relançou uma nova edição de ‘Araca, a Arquiduquesa do Encantado’, perfil da cantora escrito por um amigo querido, o produtor, compositor e pesquisador (entre muitos outros talentos) Hermínio Bello de Carvalho. É uma delícia de livro que, entre outras viagens, passeia com a carioca Araca, outro apelido, pelo suburbano Encantado, que antes tinha, para mim, como única referência, o restaurante português O Rei do Bacalhau.

A casa no Encantado em 2025 e Aracy de Almeida no começo da década de 1960: cantora de sucesso, intérprete de Noel, jurada rabugenta e arquiduquesa do Encantado (Fotos: Oscar Valporto e Reprodução)

O livro do ‘Bello Hermínio’, como ela chamava o amigo, traça o perfil de Aracy de Almeida, a partir de histórias vividas pela cantora, algumas testemunhadas pelo próprio, outras contadas pela própria depois que os dois se conheceram no começo dos anos 1960. Para conhecer mais a biografia, melhor ouvir a série ‘Aracy de Almeida é coisa nossa’, feita por Pedro Paulo Malta e Rodrigo Alzuguir para a Rádio Batuta, que reúne depoimentos e gravações da cantora, interpretando e contando detalhes de sua vida. Aracy começou a cantar no coro da igreja batista onde o irmão era pastor. Morou no Encantado desde sempre, estudou nos bairros vizinhos do Engenho de Dentro e do Méier. Cantava também “em festinhas”, no “candomblé da Paulina” e na escola de samba “Somos de Pouco Falar”, na Abolição, como ela contou anos depois. No começo da década de 1930, foi apresentada ao compositor e pianista Custódio Mesquita, que a levou para se apresentar na Rádio Educadora.

Foi na emissora que, conta também a própria Aracy, que ela foi abordada por Noel Rosa, já conhecido compositor: ele elogiou sua voz anasalada e afinada e a convidou “para tomar umas cervejas Cascatinha” na Taberna da Glória, restaurante que ainda sobrevive, e, ao amanhecer do dia, a acompanhou de trem até em casa, no Encantado. Era o começo de uma intensa amizade, mal vista pelos pais de Aracy, os religiosos Baltasar e Hermogênea: a cantora, já chegada a uma boemia, emburacou de vez na companhia de Noel Rosa e varava a madrugada nas mesas dos bares e cantando até na zona de prostituição do Mangue, que o bardo de Vila Isabel frequentava.

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Aracy de Almeida, jurada de calouros no programa Silvio Santos na década de 1970 e sucesso no rádio nos anos 1930 (Reproduções)

Aracy de Almeida gravou seus primeiros sambas em 1934 e rapidamente chamou a atenção: nos dois anos seguintes, gravou mais de 15 discos, compactos com uma música de cada lado. Foram muitos sambas de Noel – o mais famoso ‘Palpite Infeliz: ‘Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira/ Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também”. E também de outros compositores de sucesso da época: Nássara, Orestes Barbosa, Herivelto Martins, Cartola. Já era cantora de sucesso – “O Samba em Pessoa”, como a chamava o famoso apresentador Cesar Ladeira – quando Noel morreu em 1937. No ano seguinte, ela lançou um disco com duas músicas do compositor: Século do Progresso e a maravilhosa Último Desejo (“Às pessoas que eu detesto/ Diga sempre que eu não presto/ Que meu lar é o botequim/ Que eu arruinei sua vida/ Que eu não mereço a comida/ Que você pagou pra mim”),

Contratada das melhores gravadoras e emissoras de rádio durante toda a década de 1940, Aracy nunca deixou o Encantado: comprou uma casa na Rua Almeida Bastos, onde morou até o fim da vida, exceto por uma temporada em São Paulo. Nos primeiros anos de carreira, voltava para casa de trem mesmo – a casa ficava a menos de um quilômetro da estação do bairro: ganhou também os apelidos de “A Dama da Central” e “A Dama do Encantado”. Nunca deixou a boemia; gostava das madrugadas e do uísque, que, com amigos, tomava em quantidades que provocava “baixa nas reservas dos tonéis da Escócia”, como escreve Hermínio em ‘Araca, a Arquiduquesa do Encantado”. Mas sempre voltava para casa: já famosa, tinha táxis à disposição para levá-la ao bairro da Zona Norte.

A casa onde Aracy de Almeida morou no Encantado: sem referências à cantora em um bairro maltratado pelo tempo (Foto: Oscar Valporto)

A casa no Encantado era ampla, com jardim nos fundos para os cachorros e as plantas de Aracy. Também era cheia de discos (gostava de tantos e óperas), quadros e peças de antiquário. Ao seu reduto da Zona Norte, a cantora convidava os novos amigos que fez na carreira: Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Antonio Maria, Dorival Caymmi, Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Turíbio Santos e o próprio Bello Hermínio. Voltava para o Encantado nos quatro anos de sucesso (1948-1952) numa das boates mais famosas da cidade, a Vogue, em Copacabana, onde revisitou as composições de Noel Rosa e acabou gravando dois álbuns triplos só com músicas do amigo, inclusive a ainda inédita ‘Três Apitos’ (“Quando o apito/ Da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você”). E voltava para o Encantado, depois de gravar o programa Silvio Santos, nos tempos de sucesso como jurada na fase final de sua vida – Aracy de Almeida morreu em 1988.

A casa ainda está lá no número 294 da Rua Almeida Bastos – sem qualquer indicação de que ali morou Aracy. O Encantado é um desses bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro que foi perdendo um pouco da identidade com a decadência da região. A estação de trem fechou no começo da década de 1970 – hoje, no local, só existe uma passagem de pedestre para se atravessar para o outro lado do bairro, ainda um pouco mais maltratado do que o lado onde estão a casa de Aracy e as ruas mais conhecidas do Encantado, que teria esse nome por conta da lenda de encantamento do Rio Faria (hoje um curso d’água estreito e terrivelmente poluído). As terras do bairro eram propriedade da família Reis e as mulheres da família (Guilhermina, Angelina, Silvana) batizam ruas do Encantado.

Restaurante O Rei do Bacalhau: boa comida portuguesa que mantém o Encantado de Aracy de Almeida no mapa da cidade (Foto: Oscar Valporto)

Na Rua Guilhermina, fica hoje o endereço mais conhecido do Encantado: o Rei do Bacalhau, restaurante aberto em 1965, que rapidamente consolidou-se como uma das melhores casas de comida portuguesa da cidade. Está há 60 anos no mesmo endereço, servindo seus famosos bolinhos e as receitas mais tradicionais do peixe que garante sua realeza: ao Brás, ao Zé do Pipo, à Gomes de Sá, à Portuguesa, além de doces portugueses típicos – de pastel de Belém à barriga de freira. Passou certamente por algumas reformas nas últimas décadas – creio que não ia lá desde os anos 1980.

Voltei ao Encantado em agosto, conduzido pelo livro de Hermínio. Saltei na Estação do Engenho de Dentro, passei pelo Estádio Nilton Santos e vim margeando a linha até chegar onde era a antiga estação. Ouvindo Aracy cantar Noel no celular, fui até a casa onde a cantora morou – que parece bem conservada, mais do que muitas do bairro, que sofre com o esvaziamento, principalmente depois da construção da Linha Amarela, via expressa que passa por cima de boa parte de ruas, hoje com pouco de encantador. Fiquei feliz de testemunhar que o Rei do Bacalhau continua servindo boa comida portuguesa. E, garantem os garçons, mantém uma clientela fiel. Não sei se Aracy – que tinha fama de excelente cozinheira – chegou a conhecer o restaurante, mas creio que ficaria feliz em saber que ele ainda ajuda a colocar o Encantado no mapa.

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