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O que aprendemos sobre travessias

No Xingu, não tenho outro caminho senão re-afirmar a centralidade do nossos povos na luta por justiça climática

ODS 10ODS 13 • Publicada em 28 de agosto de 2025 - 09:32 • Atualizada em 28 de agosto de 2025 - 09:54

Nem lembro qual foi a última vez que deitei para contemplar as estrelas sem celular. Já faz tempo que me sinto uma pessoa muito mais urbana do que qualquer outra coisa. Vivo entre concretos e estradas pavimentadas, onde energia elétrica e o acesso a qualquer coisa bem de serviço não é uma questão. Pedi licença para chegar em território sagrado, tirei os calçados — e cheguei!

Ontem, porém, após enfrentar doze horas de estrada para finalmente cruzar as margens do rio Xingu, no extremo norte do Mato Grosso, quase sul do estado do Pará, peguei um barco e me senti num tempo paralelo ao presente. A contagem dos minutos já não era a mesma do cronômetro do celular, afinal, mas estava sem bateria e sem nada sinal.

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A travessia de barco me levou para um outro espaço. Eu olhava para a lua, e ficava sem ar. O céu estrelado estava inacreditável. Elas dançavam em celebração a natureza plena, viva e presente. Não me senti num filme, me senti em um outro tempo — no qual a crise climática não nos impede de contemplar a grandiosidade das belezas que nos cercam.

De onde eu venho, os rios estão poluídos, não dependemos da pesca e estamos realmente surdos de tanto barulho, buzina e ruídos. Eu venho de um território urbano e periférico, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde a cena mais comum é todo mundo atrasado e com pressa; os ônibus estão lotados, estamos todos obcecados por celular, notícias e redes sociais.

Mulheres indígenas durante festa em aldeia no Xingu: centralidade do nossos povos na luta por justiça climática (Foto: Alaor Filho/ Fotos Públicas – 07/10/2024))

Atravessar o rio Xingu sem cronômetro e sem pressa de chegar resultou na recepção pelos povos da floresta bem às margens das águas. Durante o caminho, a fusão do barulho do motor com o som do rio me remeteu não só à ancestralidade, mas me fez lembrar dos defensores ambientais que cruzam rios e atravessam florestas pela proteção dos territórios. As invasões e as incontáveis ameaças ainda são muito presentes, com muitas denúncias e pouca resposta.

A luta dos nossos antepassados me faz pensar em simbologias dentro e fora das minhas possibilidades de vivência. Eu sou uma mulher negra, urbana e periférica. Minhas lutas são políticas – e se sustentam por meio de repertórios, ferramentas e formas de fazer. Gosto de pensar que minha trajetória é profundamente marcada por longas travessias — geográficas e espirituais. Aprendi com uma amiga ativista favelada, Thux Nascimento, que nós, que somos de território periférico, não nos apresentamos dizendo onde estudamos; a gente fala de onde veio.

Logo, a travessia de ontem me relembrou sobre as primeiras coisas: a sabedoria do céu, dos rios e do tempo. Me lembrou também sobre a recondução do nosso lugar na sociedade; como estamos (ou não estamos) caminhando para um lugar melhor do que esse que a gente está?

Nada do que eu sou faz com que a minha negritude não apareça em primeiro lugar. Assim como, em território indígena, nada do que fazemos não é atravessado pela ancestralidade. Aqui, tudo é sagrado, não é só chão. O território Capoto Jarina é uma terra de cura.

Logo, nos próximos dias, quero viver e encarar a sacralidade de natureza e da floresta em primeiro lugar. O que aprendemos sobre travessias — quando e enquanto atravessamos — tem mais a ver com a vida acontecendo e os sonhos que ainda restam.

Aquilombar mentes, reflorestar sonhos. Peço licença às águas e às minhas mais velhas para seguir comprometida com a construção coletiva, troca de saberes, articulação de estratégias pelo bem viver e fortalecimento das vozes que resistem e cuidam dos territórios. Não importa quantas travessias eu precise ainda fazer, não tenho outro caminho senão re-afirmar a centralidade dos nossos povos na luta por justiça climática. Afinal, o futuro é ancestral!

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