O outono parecia afinal desembarcar na Fonte da Saudade, enclave pacato da Zona Sul do Rio, com a chuva e a queda da temperatura a patamares amenos, que chegaram com a noite da terça-feira. O silêncio protocolar do ninho de endinheirados foi rasgado por rápida sequência de explosões – tiros, inesperadamente próximos. Para as almas da vizinhança, a trilha sonora de um santuário sendo profanado.
Crime, claro – que ajuda a explicar como a banda toca no cotidiano de uma megalópole tão violenta como desigual. A raridade de algo semelhante naquele trecho da cidade e a reação de autoridades, moradores, trabalhadores e imprensa permitem constatar que a violência carioca tem vários formatos.
À ocorrência: pouco depois das 21h, um grupo (“bando”, no idioma corrente na terra carioca) assaltou dois apartamentos na Rua Vitória Régia, que serpenteia por uma encosta à beira da Lagoa, e ao fugir, encontrou uma patrulha da PM. Seguiu-se o tiroteio-profanador (“intensa sequência de tiros”) na Rua Sacopã, no qual dois suspeitos (“bandidos”) morreram e outros dois (“criminosos”) foram feridos e presos. Moradores se abrigaram, desesperados. A PM apreendeu dois revólveres, uma pistola e duas granadas. Outros dois (“marginais”) que fugiram acabaram presos ao longo da madrugada, no Jardim Botânico e na Cidade Nova, perto do Centro.
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Veja o que já enviamosUm carro usado na tentativa de fuga bateu numa árvore após subir no canteiro que divide as pistas da Fonte da Saudade – e ficaria lá até a manhã seguinte, amassado, com pelo menos 15 marcas de tiro, manchas de sangue e os vidros quebrados, sucesso como efêmero ponto de visitação. Dois terços da via foram interditados ao trânsito até o fim da madrugada de quarta-feira, impondo o desvio para a Avenida Epitácio Pessoa, à beira da Lagoa. Formou-se engarrafamento incomum na região mas, para arrematar o festival de raridades, até as incansáveis buzinas guardaram luto.
Ao longo das horas seguintes, os celulares da redondeza tiveram atividade intensa. “TEVE TIROTEIO BRABO NA FONTE. Vem com cuidado. Bjo”, avisou moradora a um amigo. “NINGUÉM SAI DE CASA AGORA!! MUITOS TIROS NA RUA!!”, espantou-se outro. “Nem quando executaram aqueles PMs foi tão pesado”, relembrou um morador, citando o outro momento de violência na região, anos atrás. “Tem fotos dos mortos, sangue pra todo lado, onde vamos parar?”, revoltou-se uma terceira. “Muito perto, gente. Que horror!! QUERO IR EMBORAAAAAAAA”, desesperou-se uma vizinha, nas hipérboles típicas de mensagens instantâneas.
De seu lado, a PM soltou rojões virtuais. “Os criminosos não conseguiram burlar o cerco montado pela #PMERJ. (…) Uma pistola, dois revólveres e duas granadas estavam sendo utilizadas contra os policiais”, postou o perfil da corporação no Twitter, emoldurado pelas hashtags #SempreAtuante e #ServireProteger. O comandante do 23º BPM, coronel Ruy França, materializou-se na cena do crime para relatar detalhadamente a ação de seus comandados, a quem o quisesse entrevistar. Informou que policiais de quatro batalhões foram mobilizados na caça aos suspeitos (“bandidos”).
A quarta-feira amanheceu ensolarada naquele trecho bucólico da cidade. A ocorrência, naturalmente, ganhou status de assunto obrigatório em portarias, pontos de ônibus, na padaria, na banca de jornal e no pequeno mercado. A ladainha do “onde vamos parar” ditava o ritmo das conversas. Porteiros ofereciam fotos dos mortos, espalhadas via WhatsApp, integrados ao modelo das fake news.
A imprensa cumpriu seu papel. O site d’O Globo publicou três reportagens (o jornal impresso abriu pouco menos de meia página, sob o título “Dois ladrões são mortos pela PM na Lagoa”), e a TV Globo dedicou 2min24seg no jornal “Hoje” – transmitido para todo o país – e outros 2min52 no “RJTV 1” à ocorrência. Os repórteres registraram com destaque os aplausos dos moradores da região ao trabalho dos policiais.
Mas alguns cariocas que passaram pela cena do crime não comungaram da excitação. “Ah, lá perto de casa, tem todo dia”, deu de ombros uma senhora negra, de uniforme azul e branco, sem diminuir o passo a caminho da padaria. Moradora de comunidade popular da Zona Oeste, ela encara com tédio cenas como a que paralisou a Fonte da Saudade. Outro porteiro, que vive na Nova Holanda, no complexo de favelas da Maré, lembrou traço banal da sua vizinhança. “Por lá, só tem morte assim quando o arrego falha”, explicou, referindo-se ao costumeiro acerto entre traficantes e policiais.
Enquanto aquele canto arborizado da Lagoa, próximo ao Túnel Rebouças, debatia o evento mais extraordinário dos últimos meses, a vida mantinha seu curso no Rio de Janeiro. Houve tiroteios semelhantes, maiores e menores no Morro do Juramento; na Caixa D’água, Queimados; na Favela Kelsons, na Maré; na Pavuna e em Cascadura; um homem foi morto em operação policial na Favela do Lixão, Caxias; outro assassinado com vários tiros, disparados a partir de um carro que passava numa rua de Cavalcanti; mais um PM somou-se à assustadora estatística das vítimas fatais, dessa vez em Queimados; e, após cinco dias internada, morreu uma professora que fora baleada na cabeça num arrastão em Belford Roxo. Até 2018 acabar, o banho de sangue incessante produzirá mais de 6.700 vítimas.
Nenhum comandante, dos vários batalhões encarregados da segurança nas regiões das cenas de violência, ofereceu-se para entrevistas ou explicações. No pequeno canteiro na esquina da Sacopã com a Fonte da Saudade, o carro-ícone da ocorrência acabou substituído por uma pequena placa de madeira, onde se lia “Paz” escrita artesanalmente com tinta vermelha, que escorria aos poucos, pingando no chão.