ODS 1
#RioéRua: uma viagem com Tiradentes
A capital do Brasil Colônia testemunhou articulações, tentativa de fuga, captura, prisão, processo e enforcamento do alferes Joaquim José
Era nesse papel de agitador e articulador que Joaquim José estava no Rio em abril de 1789, morando numa hospedaria na Rua de São Pedro, uma via no centro da capital que ligava a área do antigo porto, entre a Praça XV e a Praça Mauá de hoje, ao Campo de São Domingos, uma versão muito ampliada do Campo de Santana dois séculos e meio atrás – a Rua de São Pedro não existe mais; foi atropelada pela construção da Avenida Presidente Vargas na década de 1940. Tiradentes não sabia, mas, em Minas, a conspiração já havia sido denunciada: a delação oficial de Joaquim Silvério dos Reis está datada de 11 de abril. O delator foi, inclusive, enviado ao Rio pelo Visconde de Barbacena, governador de Minas, para avisar o vice-rei Luis de Vasconcelos que o alferes estava no Rio e que precisava apenas de sua ordem para prender os conspiradores mineiros.
Localizado com auxílio de Silvério, Tiradentes foi seguido por homens do vice-rei, que desejava, antes da prisão, descobrir seus contatos no Rio de Janeiro. Mas o alferes percebeu a tocaia e, já no começo de maio, decidiu voltar a Minas. No dia 6, um regimento foi prendê-lo na hospedaria. Tiradentes havia escapado: dormiu por uma ou duas noites, através do auxílio de um clérigo amigo, na Igreja Nossa Senhora da Mãe dos Homens, um pequeno templo que existe ainda hoje na Rua da Alfândega – outra via histórica da nossa cidade, que, como a igreja, resistiu aos séculos. Ela já tinha este nome quando nosso herói mineiro se escondeu na igreja: foi batizada assim em 1716, quando os portugueses criaram na parte próxima ao porto a Repartição da Alfândega.
Depois de receber armas de aliados cariocas, Tiradentes escondeu-se na casa de um amigo na Rua dos Latoeiros. Foi nesta casa que, na noite do dia 10 de maio, um regimento militar enviado pelo vice-rei e comandado pelo tenente Francisco Vidigal capturou o alferes que, mesmo com um bacamarte e duas pistolas, não reagiu. A Rua dos Latoeiros era assim chamada em 1789 porque reunia muitos ferreiros e lojas de ferragens. Em 1865, seria rebatizada com o nome do poeta Gonçalves Dias – portanto, assim já era chamada quando foi inaugurada ali, em 1894, a Confeitaria Colombo, desde então – e até hoje – o estabelecimento mais famoso da via. Para os boêmios e rueiros, entretanto, a Gonçalves Dias está no mapa pelo Opus Bar e seu fabuloso pernil, servido em sanduíches ou porções que ajudam a lotar a calçada da rua de pedestres.
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Veja o que já enviamosMas retornemos, com água na boca, a 1789. Tiradentes foi levado direto para a cadeia da Ilha das Cobras, batizada assim por invasores franceses no século XIV. No fim do século XVIII, três fortes militares erguiam-se na ilha e, para lá, eram levados os inimigos da coroa portuguesa. Hoje, a ilha das Cobras é conhecida por abrigar o Arsenal de Marinha – mas também ficam lá o Corpo de Fuzileiros Navais, o Hospital Central de Marinha e o Presídio Naval. Enquanto os outros conspiradores eram presos em Minas, Joaquim José foi interrogado e, provavelmente, torturado nas masmorras da Ilha Fiscal. No mês seguinte, os principais líderes da chamada Inconfidência Mineira estavam encarcerados na ilha – com exceção do poeta Claudio Manoel da Costa que suicidou-se na cadeia em Vila Rica (hoje Ouro Preto), então capital de Minas.
Tiradentes permaneceu preso e incomunicável em uma pequena cela na ilha das Cobras, de onde saiu, 1.072 dias depois, para a fase final do processo, na terça-feira, 17 de abril de 1792, quando ele e outros conspiradores foram levados para a Cadeia da Relação. O prédio, conhecido como Cadeia Velha, tinha celas no primeiro andar; no segundo, funcionava o Tribunal da Relação. Ali, os 11 principais réus ouviram, no dia 19, a leitura da sentença, que teria demorado mais de 12 horas: todos foram condenados à morte na forca. No dia seguinte, sexta-feira, foi publicado o acórdão: a pena dos outros 10 condenados foi comutada para o degredo perpétuo em colônias portuguesas na África; a pena de morte foi mantida apenas para Tiradentes, que não mereceu perdão da Rainha Maria I, avó de Pedro I.
Era uma manhã de sábado com sol, do outono de 238 anos atrás, quando o alferes Joaquim José saiu escoltado pela Guarda Real da Cadeia da Relação – o prédio serviria depois de alojamento para os empregados de Dom João VI com a chegada da família real e, com a Independência, de sede do Parlamento Imperial. Foi demolido em 1914 para dar lugar à sede da Câmara dos Deputados, inaugurada em 1922 como Palácio Tiradentes, hoje sede da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Acompanhado pela curiosidade popular, o cortejo com o réu condenado à forca seguiu pela Rua da Cadeia (hoje Rua da Assembleia), passou pelo Largo da Carioca, seguiu pela Rua do Piolho (batizada de Rua da Carioca no século seguinte) até chegar no Largo do Rossio (ou Campo dos Ciganos) – que viraria Praça do Constituição ainda no Império, quando ganhou a estátua equestre de Dom Pedro I, e, na República, Praça Tiradentes em homenagem ao nosso herói,
No espetáculo preparado para o enforcamento, encenado como prova de força da Coroa portuguesa a fim de desmotivar outras rebeliões, houve espaço para a última oração de Tiradentes, na Igreja da de Nossa Senhora da Lampadosa, outra igreja que sobreviveu aos séculos e ainda está lá na Avenida Passos, que, em 1792, chamava-se Rua da Lampadosa. O patíbulo estava montado na praça na esquina da Rua da Lampadosa com a Rua da Forca (hoje Senhor dos Passos). Tinha mais de três metros de altura para que a multidão, que crescia com a passagem do cortejo, pudesse ver o enforcamento. Um espetáculo macabro, é verdade: mas na rua e para a rua, como é a tradição desta cidade de São Sebastião.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade