Antes do Carnaval, a prefeitura do Rio de Janeiro anunciou o começo da retirada de linhas de ônibus das principais vias do Centro já que a Linha 3 do VLT estava concluída e o plano inicial de instalação dos bondes modernos na região era exatamente desafogar o trânsito com a saída da manada de coletivos que poluem o coração da cidade. No anúncio, a prefeitura citava cidades como Amsterdã, na Holanda, e Bordeaux, na França, onde as partes centrais – e históricas – são atendidas pelo sistema de bondes. Para celebrar essa visão de futuro melhor, dei um passeio pela Avenida Marechal Floriano, trajeto da Linha 3, vi os bondes do VLT em teste, aproveitei para almoçar uma fritada na Casa Paladino. Pela avenida, aqueles que sofreram anos com as obras – comerciantes, funcionários, empregados de firmas, frequentadores dos restaurantes – também comemoravam.
Mas nunca dá para confiar em boas notícias vindas do prefeito Crivella. Um mês depois, o plano de retirar os ônibus do Centro já tinha sido esquecido: a linha 3 não havia sido inaugurada e o prefeito reclamava publicamente do VLT, que chamou de porcaria numa reunião com servidores. O consórcio responsável pela operação dos bondes, por sua parte, passou a cobrar publicamente a dívida da Prefeitura do Rio – desde maio de 2018, o poder municipal não cumpre a parte estabelecida no contrato, que anunciou querer rever. Em abril, o VLT Carioca entrou na Justiça para cobrar a dívida; no começo deste mês de julho, pediu, também judicialmente, a rescisão do contrato.
O impasse – agora judicializado – prejudica a cidade e, particularmente, aqueles que acreditavam em melhores tempos para a Marechal Floriano – ou Rua Larga, como foi chamada durante décadas quando chegou a ser uma das mais movimentadas do Centro. Na verdade, Rua Larga de São Joaquim, nome dado em meados do século XVIII, quando foi erguida uma capela em homenagem ao santo, perto da esquina com a Rua do Valongo (hoje Camerino). A rua era Larga porque foi alargada para ligar a via já existente – com concentração de comércio – ao Campo de São Domingos, o futuro Campo da Aclamação e hoje Campo de Santana, que, quase três séculos atrás, ia até a área onde estão hoje a Central do Brasil e o Ministério do Exército. Pelo outro lado, a Rua Larga de São Joaquim estava unida, naturalmente, à Rua Estreita de São Joaquim, que ia até o largo da Igreja de Santa Rita.
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Veja o que já enviamosNo século XIX, a Rua Larga foi tornando-se menos comercial – principalmente depois do fechamento do Cais do Valongo e da importação oficial de escravos em 1831 – e mais residencial. Em 1837, após uma ampla reforma no prédio modesto do Seminário São Joaquim, foi inaugurado o Imperial Colégio Pedro II, instituição de ensino secundário que logo reuniu os filhos da elite econômica e política na capital do país. A rua ficou mais chique com a construção em 1855, do Palácio do Itamaraty, palacete com salões e jardins, encomendado por Francisco José da Rocha, conde de Itamaraty, bem-sucedido comerciante de café e pedras preciosas.
Neste período, a Rua Larga ganhou mais imóveis para moradia e para comércio – ou, em alguns casos, sobrados para os dois usos. Era talvez a via mais importante do Centro até a reforma urbana do prefeito Pereira Passos no começo do Século XX, quando foi construída a Avenida Rio Branco e a Rua Larga perdeu importância e até o nome. Na reforma, a Rua Estreita foi alargada – e, no caminho, botaram abaixo a Igreja de São Joaquim, que ficava perto do Colégio Pedro II e emprestava o nome às duas vias, Com o alargamento, Larga e Estreita viraram uma só rua: a Avenida Marechal Floriano, batizada em homenagem ao segundo presidente do Brasil.
A Igreja Matriz de Santa Rita – a mais antiga do país em homenagem à santa – sobreviveu ao bota-abaixo e manteve o estilo barroco de sua construção na primeira metade do século XVIII. Neste século XXI, é a edificação mais antiga da Avenida Marechal Floriano e um bom lugar para começar uma nova visita: no Largo de Santa Rita, durante a obra da Linha 3, foram encontrados, nas escavações, alicerces de uma loja de escravos. Ali perto, na esquina com a Rua Miguel Couto, começa o Beco dos Sardinhas, com sua aglomeração de botecos especializados em sardinha frita e cerveja gelada.
Uma das boas coisas do passeio é que, mesmo sem o VLT, a Marechal Floriano virou praticamente uma rua de pedestres: são poucos os trechos onde os veículos podem circular. A área dos trilhos virou uma ciclovia improvisada; na selva de ônibus do centro, é um ótimo alternativa para quem quer andar de bicicleta. Os prédios mais antigos estão na área da antiga Rua Larga, a partir do Pedro II, que continua funcionando ali. Na esquina da Rua dos Andradas, edifício reformado de 1927 abriga agora o Belga Hotel e Brasserie, um dos empreendimentos que apostou na Linha 3 do VLT para investir na área. A comida vale a pena e o prédio ficou bonito. A Casa Paladino – com seus saborosos sanduíches e fritadas – mantém o clima de armazém de um século atrás: foi fundada em 1906. O Centro Cultural da Light funciona no imóvel construído para ser sede da companhia em 1912. O Palácio do Itamaraty, de 1855, está precisando de uma mão de tinta na fachada cor de rosa.
Há sobrados maltratados também datas na fachada de 1912, 1907 e até 1876. A fachada do Cine Floriano – inaugurado em 1936 e fechado há mais de meio-século – sobrevive sobre um estacionamento. Havia a expectativa de que, depois de dois anos de obras e prejuízos, a inauguração da Linha 3, revitalizasse a avenida, com a retomada do movimento e a criação, inclusive, de novos negócios, já que ainda há imóveis fechados e salas desocupadas nos edifícios comerciais. Mas, enquanto consórcio e prefeitura brigam e os empresários dos ônibus – sempre eles – seguem lucrando no trânsito caótico do Centro, a velha Rua Larga vive a agonia da espera por um futuro que já ninguém mais quando (e se) vai chegar.