Circunstâncias de 2019 me fizeram voltar a andar de ônibus regularmente: aposentei o carro ao ir para a Bahia em 2008 e, no retorno, com estação de metrô a poucos metros de casa, priorizei sempre os trilhos, não apenas os subterrâneos mas também os dos trens nos caminhos para áreas da Zona Norte. Os balanços dos ônibus do século XXI me levaram, pela memória, de volta à infância e à adolescência: das viagens até o Largo do Machado para reforçar o time de botão; do caminho para o Pedro II no Humaitá e depois no Centro, da aventura de ir à praia com a galera de Laranjeiras pela nova linha que passava pelo Túnel Rebouças.
LEIA MAIS: História e sabores de 260 anos de Tijuca
LEIA MAIS: Um prefeito inimigo do verde
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA minha juventude foi marcada por longas esperas nos pontos de ônibus nas madrugadas do Rio – boêmio precoce, porém prudente, só tirei carteira de habilitação para dirigir aos 29 anos. Na mais longa das madrugadas, após um ataque com sucesso à coleção de uísques do pai de um amigo, peguei o ônibus que parecia restar em Ipanema na direção de Laranjeiras – os companheiros de bebedeira moravam na vizinhança do anfitrião. A linha era Leblon-Grajaú; a meta era saltar na Pinheiro Machado, perto do Palácio Guanabara. Acordei com o cobrador – foi há 40 anos – me sacudindo: “chegamos”. Desci do ônibus, me dei conta, vagamente, de onde devia estar. Ainda consegui perguntar antes do motorista recolher ó veículo para a garagem: “a Tijuca é para que lado?”
A Praça Edmundo Rego, coração do Grajaú, fica completamente deserta depois da uma da madrugada: era assim em 1980, continua assim. É uma praça circular, encontro de duas das principais avenidas do bairro – a Engenheiro Richard e a Júlio Furtado – onde, durante o dia, moradores se encontram: crianças brincam, adolescentes jogam conversa fora, adultos fazem compras: por ali, tem padaria, supermercado, farmácia, açougue, agência bancária, lanchonetes. Era tudo menos movimentado no século passado, mas a praça mudou pouco: as reformas feitas deixaram a Edmundo Rego mais arrumada, com brinquedos para crianças e até uma horta comunitária.
Mas andar pelo Grajaú de dia, quase 40 anos depois daquela madrugada, revela o mesmo bairro. Aqui é fácil ir pela sombra: são muitas árvores, recorde talvez por essas bandas da cidade, calçadas mais largas, ainda muitas casas. O Grajaú nasceu planejado, quase um século atrás, exatamente pelo empresário e engenheiro Antonio Eugênio Richard Júnior, dono da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções (CBIC), responsável pela urbanização e loteamento do bairro. Foi ele quem batizou a área como Grajaú, nome de sua cidade natal, no sul do Maranhão. Talvez pelas ruas mais bem planejadas e organizadas, o bairro sofreu menos com a avalanche imobiliária que atingiu a Tijuca e outros bairros vizinhos a partir da metade do século XX. O calçamento das ruas foi de paralelepípedos até meados da década de 1960. A Reserva Florestal – hoje Parque Estadual – do Grajaú, criada em 1978, ajudou a preservar o trecho de Mata Atlântica e suas encostas da favelização que avançou pelos morros de Tijuca, Andaraí e Vila Isabel.
Essas atrações do bairro – o parque, as árvores, as casas – já existiam na minha juventude mas não eram capazes de atrair – exceto por acidente – o boêmio precoce. Para o veterano deste século, o Grajaú está muito mais atraente: no Comida Di Buteco 2018 eram cinco bares do bairro na disputa, passei por três. Todos continuam na ativa, sempre com a clientela se espalhando pela rua: o Santo Remédio, que nasceu na Uberaba e está na Barão de Mesquita, faz sucesso com seu jiló; o Bar do Mariano lota a larga calçada na esquina da Professor Valadares com a Mearim com seus pastéis e sua moela; e o Enchendo Linguiça continua uma perdição para paladar e artérias. Foi lá que parei para comer um pupurri (escreve assim mesmo no cardápio) de linguiça como almoço. E ficar namorando aquele joelho porco girando feito frango de padaria com nome quase impronunciável – schweinshaxe – que é demais para um só.
Retornei à Zona Sul, naturalmente de ônibus: o 434, aquele Grajaú/Leblon, não tem mais ponto final na Praça Edmundo Rego e, de acordo com a vizinhança, mudou de itinerário pelo menos umas quatro vezes. Também não cruza mais o Santa Bárbara e passa na Pinheiro Machado: o ponto final no lado de cá da cidade ficou em Copacabana. Mas as linhas do Grajaú ainda me servem: o 422 me leva até a Laranjeiras dos meus irmãos – ponto final, Cosme Velho; o 435, Grajaú/Gávea, passa perto de casa no Leblon. Enquanto viajo nele, relembro os passos daquela madrugada: andei na direção da Tijuca, minha única referência por ali àquela altura da vida, peguei um Cascadura/Saenz Peña na Teodoro da Silva. Passei quase duas horas na praça maior da Tijuca, jogando porrinha com outros dois perdidos da madrugada, até aparecer o primeiro ônibus na direção de Laranjeiras. Cheguei em casa de manhã com aquela sensação – que ainda tenho hoje – de que a cidade é minha amiga.
#RioéRua
Só esqueceram de incluir nesta linda estória, os adolescente com uniformes escolares da prefeitura fumando maconha na praça as vistas de uma cabina da PM. Os tempos mudaram, mas nem tudo permanece como antes.
Graças a Deus ele viu o lado bom o que é . muito válido.