Na noite de 11 de janeiro de 2011, a chuva engrossou em toda a Região Serrana do Rio de Janeiro. O temporal da madrugada provocou avalanches de lama descendo os morros em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis. Muita gente dormia quando, entre 3h e 4h de 12 de janeiro, suas casas desabaram sob a força das águas carregadas de terra e entulho. Famílias inteiras morreram soterradas. Com o deslizamento de barreiras, as galerias de águas pluviais ficaram totalmente obstruídas por terra trazida das encostas, entulho e lixo, o que piorou as inundações. Estradas e pontes foram destruídas; bairros inteiros ficaram isolados. O dia 12 foi de caos na Região Serrana, ainda sob chuva, enquanto equipes de resgate eram organizadas em busca de sobreviventes sob as montanhas de lama e lixo.
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Quando a então recém-empossada presidente Dilma Rousseff desembarcou em Nova Friburgo, no dia 13, quase não chovia, mas o registro de mais de 500 mortos já estabelecia a enchente na Região Serrana como a maior catástrofe climática da história. Pelos dados oficiais, fechados meses depois, 918 pessoas morreram na tragédia; e, pelo menos, 99 foram consideradas desaparecidas 10 anos depois. Na ocasião, 30 mil pessoas ficaram desalojadas – centenas de famílias perderam suas casas definitivamente. A presidente lembrou que a ocupação desordenada do solo e das encostas era a principal responsável. “A prevenção não é uma questão de Defesa Civil apenas: é uma questão de saneamento, drenagem e política habitacional. A moradia em área de risco no Brasil é a regra, não é a exceção”, disse Dilma, no que foi sua primeira entrevista no cargo.
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Dez anos depois, em 2021, o governo do Rio de Janeiro decretou luto oficial de três dias, a partir do domingo (10/01), e o governador interino Cláudio Castro vai transferir a administração para Região Serrana onde visitará obras relativas às enchentes ainda em andamento, encontrará prefeitos e associações de vítimas e anunciará novas intervenções. Vai encontrar os municípios com as mesmas condições para que a tragédia se repita: desmatamento nas encostas e ocupação desordenada do solo. Dados do SOS Mata Atlântica mostram que o bioma, que cobre todo o Rio de Janeiro, sofreu uma devastação acelerada entre 1985 e 2010 e só em anos recentes foi contido. A ameaça é ainda maior porque as mudanças climáticas, provocadas pela intervenção humana, vem tornando os desastres naturais mais comuns e mudando os regimes de chuva, inclusive na Região Serrana do Rio.
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Em apresentação no ciclo Desastres e Mudanças Climáticas, promovido pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, a geógrafa Ana Luiza Coelho Netto, professora titular do Departamento de Geografia do IGEO/UFRJ e coordenadora do Geoheco – Laboratório de Geo-Hidroecologia e Gestão de Riscos, explicou que as condições geográficas do estado do Rio de Janeiro o tornam suscetível a episódios de chuvas torrenciais, sobretudo na Região Serrana. “No entanto, interferências antrópicas como o desmatamento das áreas florestais vêm causando profundas mudanças no ciclo hidrológico, concentrando as chuvas sobretudo no verão e tornando-as mais intensas”, afirmou a geógrafa durante sua aula.
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Veja o que já enviamosDe acordo com dados do Laboratório de Geo-Hidroecologia e Gestão de Riscos da UFRJ, a Região Serrana do Rio de Janeiro, por sua posição geográfica, recebe frentes de massas de ar, carregadas de umidade do Atlântico e impulsionadas por frentes frias, o que favorece as ocorrências de chuvas, inclusive as mais intensas, com mais de 100mm, capazes de causar deslizamentos e inundações rápidas. Ana Luiza Coelho Netto destacou ainda que os dados pluviométricos da Região Serrana indicam que o regime de chuvas vem mudando gradualmente desde o fim do século 20. “As chuvas estão cada vez mais concentradas. Há estiagens mais frequentes, prolongadas, aliadas a esta concentração cada vez maior de chuvas no verão”, explicou a professora.
Esses eventos extremos, que ocorrem no mundo, também vêm se repetindo no Brasil. “Atualmente, estamos em um processo acelerado de mudança no regime climático, no regime de chuvas, em virtude do processo desordenado de crescimento de cidades, da industrialização e da devastação das florestas e da cobertura vegetal”, ensinou a coordenadora do Geoheco.
Ocupações e intervenções inadequadas
Nota técnica, produzida em julho de 2020 pelo Observatório de Governança das Águas (OGA Brasil), incluiu uma análise dos deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro, tomando por base uma área do município de Nova Friburgo, o mais atingido pela enchente de 2011. “O resultado da análise mostrou que, do total de deslizamentos ocorridos na área analisada, 92% ocorreram em áreas com algum tipo de alteração antrópica e apenas 8% ocorreram em áreas com vegetação nativa bem conservada, sem alteração próxima”, atesta a nota técnica. A análise evidencia que o número de deslizamentos ocorridos em áreas com vegetação nativa bem conservada é significativamente menor do que nas áreas com intervenção humana (antropizadas) – áreas agrícolas, áreas edificadas e pastagens. A maioria dos deslizamentos em áreas com vegetação nativa bem conservada ocorreu em locais onde havia algum tipo de intervenção antrópica muito próxima, a exemplo de estradas ou áreas alteradas no topo ou base do morro.
O Observatório de Governança da Água é um movimento multissetorial em rede que reúne 49 instituições do poder público, setor privado, organizações da sociedade civil e 12 pesquisadores (as) que atuam na gestão das águas no Brasil. Na análise sobre a tragédia na Região Serrana para a nota, os pesquisadores observaram que a maioria dos deslizamentos ocorreu em áreas com declividade acentuada e topos de morro, consideradas pelo Código Florestal como áreas de preservação permanente (no caso das áreas com mais de 45º de declividade e topos de morro) ou áreas com utilização limitada (no caso das áreas entre 25° e 45º de declividade). “O desastre natural ocorrido na Região Serrana do Rio de Janeiro assume contorno catastrófico por conta da conjugação de fatores sabidamente associados à geração de risco de acidentes naturais. Topografia, geologia, hidrografia e regime pluviométrico da região determinam a previsibilidade da ocorrência de acidentes naturais na área, fenômenos diretamente associados com a evolução e moldagem da paisagem”, afirma o documento.
O estudo demonstra que se a faixa de 30 metros em cada margem (60 metros no total) considerada Área de Preservação Permanente ao longo dos cursos d’água estivesse preservada e livre para a passagem da água, bem como, se as áreas com elevada inclinação e os topos de morros, montes, montanhas e serras estivessem livres da ocupação e intervenções inadequadas, como determina a legislação, os efeitos da chuva teriam sido significativamente menores, tanto em suas consequências ambientais, quanto econômicas e sociais. “A ocupação destas encostas e áreas adjacentes transforma os desastres naturais em eventos catastróficos devido a proporção de vítimas e danos socioeconômicos”, aponta a nota técnica.
O documento do Observatório de Governança da Água defende a importância da legislação e da fiscalização em áreas de Mata Atlântica como a Região Serrana do Rio. “Os parâmetros de proteção estabelecidos na Lei da Mata Atlântica e no Código Florestal devem ser mantidos, rigorosamente fiscalizados e implementados, tanto nas áreas rurais quanto urbanas. Além disso, a legislação federal deveria ser mais incisiva no sentido de exigir do Poder Público (Federal, Estadual e Municipal) medidas complementares de proteção a áreas que apresentem localmente características ambientais relevantes ou áreas que estejam sujeitas a riscos de enchentes, erosão ou deslizamento de terra e rolamento de rochas”.
Em 2011, as chuvas na Região Serrana ficaram registradas como as mais intensas já verificadas e com os maiores índices pluviométricos da história de Nova Friburgo. Em Petrópolis e Teresópolis, no entanto, o índice, apesar de alto, ficou abaixo dos recordes históricos. Nova Friburgo foi exatamente a cidade com o maior número de mortos na tragédia de 2011: 429. Em Teresópolis, foram 392 óbitos; em Petrópolis, 71. Em Sumidouro, 22 pessoas morreram; duas mortes foram registradas em São José do Vale do Rio Preto e outras duas em Bom Jardim. A maioria dos desaparecidos (74) morava em Teresópolis.
Nos últimos 10 anos, os governos – federal e estadual – e as prefeituras da região promoveram obras de contenção e recuperação de encostas, mapeamento de áreas de risco, ampliação das estruturas de monitoramento do clima, instalação de sirenes, criação de pontos de apoio para moradores em áreas de risco, e envio de SMS, comunicando sobre perigos durante os temporais. Contudo, a lista preparada por prefeitos e associações de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis para ser entregue ao governador Cláudio Castro com pedidos de intervenção – obras de drenagem de rios, contenção de encostas, programas de reflorestamento, demolição de casas em áreas de risco semidestruídas pela enchente, e construção de novas habitações para moradores em áreas de risco, mostra que o cenário na Região Serrana mudou pouco e a população segue sob ameaça de nova catástrofe climática.
Não aprendemos a lição…