Há algo de sórdido por trás do ocaso do Bar Luiz. Atribuir o fechamento de um sítio centenário, templo da memória carioca, somente à crise econômica, equivale a atribuir a uma causa amorfa, sem sujeito, de que todos somos vítimas, e o Bar Luiz seria apenas mais uma delas.
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Veja o que já enviamosÉ certo que de uns tempos para cá, estes que precederam à morte anunciada semana passada pelo aguerrido jornal Bafafá, do meu amigo Ricardo Rabelo, o Bar Luiz andou tropeçando na serpentina, servindo um chope duvidoso, para os especialistas mais intransigentes. E especialistas intransigentes, diga-se, faziam a fama da casa, que foi paulatinamente perdendo fregueses, até ficar às moscas.
Eu mesma desabei na decadência do salão às escuras, no esplendor de um meio-dia, de uma quarta-feira qualquer de dois meses atrás, quando entrei lá com o Custodio Coimbra, ambos dispostos a traçar o melhor rosbife com salada de batata do planeta Terra. Demos meia-volta, estarrecidos, não sem antes perguntarmos, com a voz trêmula, a um dos garçons ociosos: está fechado?
Estava aberto. E não tinha um único comensal àquele horário de almoço no Centro do Rio. Nem vela no breu. Saímos bem tristonhos, pensando no fim de uma era. E quanto de responsabilidade, por isso, era do próprio Bar Luiz, que perdeu qualidade e fidelidade. Este, certamente, é o entendimento mais rápido, mas sabemos que está longe de ser a explicação para a casa fechar as portas.
Há algo de sórdido por trás do ocaso do Bar Luiz. Algo que tem a ver com a força da grana que ergue e destrói coisas belas. E que não pode e não deve ser secundarizado, sob pena de vermos este modelo maquiavélico se multiplicar cidade afora. E no caso da Rua da Carioca, endereço do Bar Luiz, esta força da grana destrutiva tem nome, sobrenome e razão social: Daniel Dantas, do banco Opportunity.
Este senhor adquiriu o direito, por um saco de dinheiro, de transfigurar um bulevar que foi um centro vibrante de comércio e caminho de escritores, poetas, atores, músicos, políticos, jornalistas, juristas e o que mais se puder imaginar em diferentes períodos de um século, contado de lá para cá. Um rio de histórias e memórias, nossa Rua da Carioca. O que Daniel Dantas fez foi comprar para destruir.
Em 2012, o Opportunity Fundo de Investimentos comprou o primeiro lote de 19 sobrados remanescentes do Brasil dos anos 1930, além de outros 23 imóveis históricos em outras ruas do Centro do Rio, que pertenciam à Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Tudo por R$ 54 milhões, valores da época. A Ordem vendeu para pagar dívidas e atropelou a lei ao não dar preferência de compra aos inquilinos. Em atitude nada venerável, passou tudo nos cobres.
Feito isso, o banco de Daniel Dantas lançou para inquilinos históricos do lado ímpar da Carioca, o tiro de misericórdia, elevando do dia para a noite os aluguéis a valores que chegavam a R$ 100 mil mensais. Despejando seus ocupantes, com a força da grana que destrói coisas belas. Asfixiados, os comerciantes foram entregando os pontos, melhor dizendo, o ponto.
O Estado, na figura da Prefeitura, pouco fez. Chegou a desapropriar alguns imóveis, para tombamento e preservação. Mas não evitou que a célebre Rua da Carioca se transformasse em um sítio fantasma. A rua perdeu energia, vitalidade, vibração. E qualquer arquiteto recém-formado sabe que a vitalidade é a alma do espaço público. Que o digam os muitos projetos de revitalização desenvolvidos para ocupar os vazios urbanos das grandes cidades.
Para um capitalista pleno, revitalização é aposta baixa. Uma vez a terra arrasada, o pule de dez é um anglicismo chamado gentrificação. A cidade do Rio de Janeiro vive este processo deste sempre. O capital chega e expulsa a população local para a periferia, transfigurando história e cultura. Quem acompanha esse assunto de perto é a dupla Paulo Thiago de Melo e Zé Octávio Sebadelhe, gente querida que sabe tudo de botequim genuíno e há tempos alerta nas páginas de jornais e livros o apagão cultural da cidade com a exclusão de seus pontos de memória, para tudo ficar com cara de espigão modelo Dubai.
O Bar Luiz resistiu até aqui. É um dos remanescentes. Uma casa de encontro de almas, fundada em 3 de janeiro de 1.887, no tempo do Segundo Reinado, na Rua da Assembleia por Jacob Wendlimg. Originalmente chamou-se Zum Schlauch. Comprado em 1908 por Adolf Rumjaneck, foi rebatizado de Bar Adolf, anos depois, por força de uma lei de valorização da língua portuguesa. Só em 1927, por razões de aluguel, o estabelecimento ocupa o endereço atual, no Nº 39 da Rua da Carioca. O nome se perdeu durante a segunda grande guerra, em um episódio célebre de protesto de estudantes, que saíram em passeata do Bar Brasil para o Bar Adolf, que julgavam uma homenagem a Adolf Hitler. Virou Luiz, em referência ao proprietário de então Ludwig Vöit, naturalizado brasileiro.
A chopeira era um patrimônio à parte. Mesmo depois de modernizada, mantinha peças de maquinaria antiga, com três torneiras – duas para o chope claro e uma para o escuro – conectadas a três serpentinas, de 180 metros cada, segundo revelou, anos atrás, o então gerente Jurandir Gomes, ao pesquisador Julio Roberto Levy, que me contou tudo isso, no ano de 2004, quando me coube discorrer sobre os botequins centenários do Rio de Janeiro, para o guia Rio Botequim, editado pela Casa da Palavra e a Memória Brasil. Há 15 anos, escrevi:
“… o chope superlativo, sem adjetivo à altura de sua qualificação, claro ou escuro, não importa, é conspiração dos deuses em conluio com os demônios… Se você pede “na pressão”, o tirador José Nivaldo vai triplicar a espuma. E como o fundo da caldeireta é bom conselheiro, não hesite, peça outra. Você está começando a entender o que faz a estabilidade centenária do Bar Luiz”.
“Estabelecida a preliminar, passemos a um postulado que preconiza ofertas irrecusáveis, como o rosbife, a carne assada e todos os frios que se fazem acompanhar da melhor e inimitável salada de batatas do Rio de Janeiro. Ou ainda a kassler, o eisbein e as salsichas e salsichões, típicos da tradicional cozinha alemã, que vão tão bem com o chucrute. Irretocáveis”.
“Tudo isso acontece em um salão amplo e bem iluminado, em que se destacam as cadeirinhas austríacas, de madeira, a adornar as mesas de toalhas brancas imaculadas. Nas paredes, as fotografias da cidade do Rio de Janeiro em diferentes épocas, solenemente emolduradas, formam uma linha do tempo que começa com a reforma do prefeito Pereira Passos, em 1906, e chega ao tombamento do estabelecimento, em 1985. Mas não pense que o Bar Luiz evoca a mais longínqua sugestão retrô. A qualidade desta casa histórica está justamente em cruzar o tempo”.
O Bar Luiz não pede nem choro, nem vela. Pede intervenção pública sobre um ciclo perverso, a fim de resguardar a memória da cidade. Memória esta que pode e deve ser cultivada e auto gestada por uma confraria de amigos, clientes, gente que gosta da cidade. Precisamos de tempo. Para rearrumar a casa e seguir com o Bar Luiz vivo.