A cada 2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, milhares de fiéis lotam o Rio Vermelho, bairro de Salvador, para celebrar a orixá, a rainha das águas, dos mares e dos oceanos. Os festejos começam com bênçãos na areia, passam por uma procissão de centenas de barcos com oferendas a Iemanjá e terminam com shows e eventos na região: é quase feriado na capital baiana. Uma semana antes, entretanto, uma pequena comunidade, instalada às margens da Baía de Todos os Santos, faz uma celebração antecipada para Iemanjá, com uma festa mais modesta e mais sustentável, mas já incorporada às tradições da cidade.
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Júlio Costa passou a frequentar a comunidade Solar do Unhão, em Salvador (BA), após convite de um colega capoeirista para fazer um grafite em homenagem à Revolta dos Malês, em janeiro de 2013. Com o primeiro contato, se apaixonou pelo local — com sua pequena praia, à beira da baía — e pelo modo de vida da comunidade, e começou a produzir arte em função da melhoria do lugar, junto do coletivo de grafite Nova Dezordem.
No cenário, há um aglomerado de casas coloridas, escadas e becos que direcionam para a praia e muros pintados com grafites que homenageiam a cultura local. O solar que dá nome à comunidade é uma construção vizinha, erguida no Século 18, que hoje abriga o Museu de Arte Moderna da Bahia. Júlio conta que o trabalho com o grafite levou a uma aproximação natural com os pescadores da comunidade. “Janeiro é um período de renovação, e os pescadores têm o hábito de consertar e pintar os barcos. Acabamos nos unindo para dar apoio, pintando os barcos, comendo juntos, limpando a praia; passamos a viver essa vida. Esse é o principal motor que gerou uma amizade entre os grafiteiros e os pescadores”, relembra Júlio Costa, criador do projeto Museu de Street Art (Musas) de Salvador.
Esse é o início da história de como surgiu a celebração antecipada para divindade cultuada por devotos e simpatizantes, que acontece nas águas que banham a comunidade baiana Solar do Unhão. No último domingo, dia 26 de janeiro, aconteceu a 12° edição do Presente Ecológico para Iemanjá. O evento combina religiosidade, cultura e sustentabilidade — pois os presentes entregues são ecológicos, como flores e plantas, e a população evita materiais de longa decomposição como plástico, espelhos e vidro.
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Veja o que já enviamosO cuidado e respeito ao meio ambiente é comum em religiões de matriz africana, como explica o historiador Marcos Rezende, Ogã de Ewá e Ojuobá da Casa de Oxumarê, terreiro de candomblé que realiza o culto. “Celebrar Iemanjá não necessariamente significa dar presentes, o que tem um custo financeiro, ou colocar materiais não-biodegradáveis. Quem é de religião de matriz africana ama a natureza, e o que cabe a nós é preservar e cuidar. Nós entendemos que Iemanjá é aquela que colocou todas as pessoas no mundo depois que Nanã cedeu o barro e Oxalá deu o sopro vital. Iemanjá foi aquela que cuidou e garantiu a existência dessas pessoas aqui. Por isso, significa muito para as pessoas negras e de candomblé”.
Para Júlio Costa, a iniciativa é também uma “imposição política e contemporânea para avisar para o mundo que o mar está sendo poluído”. Ele testemunhou e participou do nascimento desta tradição. “Além disso, na nossa festa, todo mundo tem acesso, do usuário de droga que passa na Avenida do Contorno ao turista rico que vem perdido na festa. A gente não faz essa separação”, conta o grafiteiro, hoje com 44 anos.
Na festividade para Iemanjá na comunidade Solar do Unhão, uma escultura-sacra é um símbolo presente desde o primeiro ano da celebração. Júlio conta que um dia, apareceu boiando nas águas da Baía de Todos os Santos um manequim, logo apelidado pelos moradores de “sereia”. Resgataram o manequim, esculpiram um rosto e criaram uma sereia. Depois, o povo do terreiro de candomblé da Casa de Oxumarê sacralizou a peça. Segundo ele, na época, já se discutia sobre a ecologia nos presentes, e por isso decidiram não poluir o mar e não deixar resquícios no meio ambiente: “assim, nasceu a primeira edição do Presente Ecológico para Iemanjá, foi bem pequeno e bonito”, conta. Este ano, o Presente Ecológico já teve recursos através da Lei Paulo Gustavo e o apoio do Governo da Bahia e do Ministério da Cultura,
A programação anual para saudar a rainha do mar na comunidade se inicia com um café da manhã coletivo, depois chegam os balaios com as comidas para os orixás preparadas nos terreiros e flores, além dos cânticos para presentear sem agredir ao meio ambiente. A celebração também abre espaço para discursos e orações, seguido pelo cortejo de barcos que entrega os presentes ao mar. O dia finaliza com uma feijoada comunitária.
Marcos Rezende, 50 anos, também acompanha a festividade desde o princípio. Além de ser uma liderança religiosa da Casa de Oxumarê, o historiador é fundador do Coletivo de Entidades Negras (CEN), organização que é uma das apoiadoras do evento. Ele conta sobre seu envolvimento com o nascimento da iniciativa: “no passado fui convidado pelo pessoal do grafite para realização de projetos sociais e acabei morando lá. Nos reunimos com essa comunidade a beira-mar, que sempre garantiu a comida e a sobrevivência dos moradores através das águas de Iemanjá”.
Rezende também destaca a importância da celebração. “Para nós, do candomblé, Iemanjá é a senhora de todas as cabeças, é a grande mãe. Três quartos da terra é feito de água, e com o nosso corpo também é assim. Não existiria vida na terra sem água, então a água é fundamental para a nossa existência e Iemanjá é a grande mãe que alimenta a todos os seus filhos”.
A escolha da data do Presente Ecológico, que sempre acontece no final de semana anterior ao Dia de Iemanjá, tem dois principais objetivos: alertar a população sobre o meio ambiente e possibilitar a celebração da festa para os moradores da comunidade. “Os pescadores trabalham sempre, o tempo todo”, conta Marcos. Além dos pescadores, as mulheres, normalmente responsáveis pela produção de comidas típicas, e os comerciantes em geral trabalham para a realização da grande festa nas praias do Rio Vermelho, no dia 2 de fevereiro.
“Eles vão com seus barcos [no Rio Vermelho] para entregarem os presentes, para alugarem… esse é um exemplo da representação da graça que Iemanjá sempre dá. É a mãe que garante a sobrevivência de seus filhos, para terem renda e poderem acessar recursos e, dessa forma, fazer com que essas famílias estejam em paz”, explica.
A celebração, que antecipa a festa no Rio Vermelho, não é para criar disputa – no dia mais popular, a comunidade está na missão de aproveitar a oportunidade econômica que traz o Dia de Iemanjá em Salvador, como explica Júlio Costa. “Não conseguimos aproveitar totalmente o culto quando estamos focados em fazer a festa para os outros. Por isso, o Presente Ecológico de Iemanjá da comunidade do Solar Unhão é política. Não podemos perder nosso simbolismo, de resistência. A gente quer gritar isso na nossa festa”.