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Veja o que já enviamosO caminho dos incompetentes
Entre dolo, descaso e imperícia jazem os transportes públicos nas grandes cidades brasileiras
Era 1998, e o carioca Marcos Sampaio de Alcântara acabara de tomar a decisão de investir na carreira de sambista, quando pegou o ônibus de Oswaldo Cruz (território tatuado em seu DNA) em direção a Rocha Miranda. Na viagem pela Zona Norte carioca, veio a inspiração para “Geografia popular”, canção que, com parceria de Arlindo Cruz e Edinho Oliveira, traça homenagem-manifesto aos trens suburbanos do Rio.
A partir do mote “Gente boa, onde Aniceto está?” – referência a Aniceto de Menezes e Silva Júnior (1912-1993), lenda do Partido Alto e fundador do Império Serrano –, a letra percorre 38 bairros, em irresistível jornada de bamba, até o Centro e dali à Zona Sul (na versão das rodas de samba). A composição virou assinatura de seu criador, Marquinhos de Oswaldo Cruz.
Leu essa? Tarifa zero é o caminho
Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas, fosse nos distópicos dias atuais, a música provavelmente não seria criada. O então candidato a artista pediria um carro (ou pior, moto!) de aplicativo, cansado do permanente apocalipse dos transportes públicos. Na garupa ou no banco de trás do serviço que se popularizou à exaustão, para piorar o trânsito e envenenar (mais) o ar, inexistem inspiração e poesia.
Vigora, muito ao contrário, o pacto da incompetência que domina o setor há gerações de gestores e concessionários. Décadas de administradores, conservadores e progressistas, em ditaduras e na democracia, todos incapazes de estancar o caos de um serviço que se consolidou emblema de horror.
A tragédia se alimenta de dolo, descaso, demofobia, incompetência, elitismo de rigorosamente todos os responsáveis. A ponto de o transporte de massa se cristalizar como exemplo de barbeiragem do setor privado, exaltado em loas por certo embolorado pensamento econômico.
Morte recém-anunciada serve de exemplo educativo da bandalheira endêmica. Após 27 anos de terríveis serviços, a SuperVia abandonará, no fim de setembro, a concessão dos trens urbanos da região metropolitana do Rio, pingando o ponto final numa saga de impressionante incompetência. Os usuários hoje gastam mais tempo de deslocamento do que na era estatal (mesmo com todo o avanço tecnológico): a diferença atinge surreais 28 minutos a mais. O contrato também determinava atingir, em cinco anos – 2003 –, dois milhões de pessoas transportadas a cada dia. Hoje, o sistema carrega constrangedores 300 mil passageiros diariamente.

Além disso, há um cemitério de trens abandonados, enquanto a população se espreme em composições superlotadas. Tudo com a passagem mais cara do país, bizarros R$ 7,60. É aquilo: privatiza que piora.
Controlada pela Guarana Urban Mobility Incorporated (Gumi), dos grupos japoneses Mitsui e West Japan Railway Company – sim, os lendários trens da terra do sushi –, a SuperVia sai de cena impune, abençoada pela leniência dos governadores Marcello Alencar (pai da privatização), Anthony Garotinho, Benedita da Silva, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Wilson Witzel e Claudio Castro. O longo filme de terror político (e real) em cartaz há décadas no Palácio Guanabara enfileira personagens de variados tons ideológicos – todos unidos na cumplicidade à tragédia dos trens urbanos e ao martírio da população.
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Veja o que já enviamosEm mais uma das incontáveis provas de que mobilidade urbana é tema transversal, o povo pobre e sofrido da Baixada Fluminense trocou o trem, há anos, pelas vans – controladas pela milícia, consumando o “diálogo” do transporte com a segurança. Mais recentemente, surgiram os carros e motos por aplicativo – e aí a “conversa” passa a ser com o meio ambiente.
Muda a esfera de poder, prossegue a via crúcis. Os idosos do Rio estão comendo o pão que Asmodeu amassou para conseguir o prodígio de trocar o cartão para utilizar os ônibus da cidade. Sai o Rio Card, entra o Jaé, criação do prefeito Eduardo Paes e seus comandados. Em pleno 2025, século 21 além do primeiro quarto, os burocratas municipais exibem constrangedora incapacidade para dar o mínimo de conforto aos contribuintes que não utilizam aplicativos e outros badulaques digitais. Na capital mais idosa do país, multiplicam-se há meses filas de senhores e senhoras, que passam horas de suplício na busca (inútil) pelo tal Jaé e, assim, garantir o benefício da gratuidade na passagem.

“Já passou da hora de tomar remédio e me alimentar, mas sigo aqui. Nem água para beber tem. Vim só buscar meu cartão. Acho que só vou embora lá para as 15h. Sinto que é muita falta de respeito, falta de humanidade”, lamentou, desolada, dona Vicentina Silva, 77 anos, ao repórter João Vitor Costa, d’O Globo. Com dificuldade de locomoção, ela sofria no posto de cadastramento de Botafogo – o único da Zona Sul inteira –, na terça-feira (8) e, após três horas de espera, ainda havia uma centena de números à sua frente.
Noves fora a marquetice do nome que tenta emular o “carioca malandro, sestroso, sangue bom” (mas, questão de gosto, viva a democracia), o Jaé nasceu no reino encantado das boas intenções. Sua missão foi, enfim, produzir cadastro de passageiros controlado pelo setor público – o único que existe está em poder da privada Fetranspor, a holding das empresas de ônibus, vilã ancestral do setor. (Gerações de jornalistas cariocas convivemos com a lendária “caixinha” que, atribuída à entidade, irrigava clandestinamente a política do estado.) Sem saber quem viaja, fica impossível planejar estratégias, decidir mudanças, construir o equilíbrio. O nome do jogo – como sempre – é informação.
Mas faltou combinar com os russos. E o projeto necessário para ressuscitar um dos mais preciosos serviços para o funcionamento das grandes aglomerações urbanas patina também pelas idiossincrasias dos burocratas. Deu vergonha, por exemplo, ouvir a secretária de Transportes do Rio, Maína Celidônio, conjugar enfado e impaciência em entrevistas quando as filas de idosos começaram a se avolumar, diante da proximidade do prazo final para troca do sistema.
Aqui, parece que o dia a dia no setor público tisna a sensibilidade e a empatia. Não há ideia boa o suficiente para justificar o sufoco dos contribuintes em busca de direitos que são seus. Os inquilinos dos cargos públicos têm de pedir desculpas repetidamente às donas Vicentinas pelo transtorno. Ou, no idioma do Jaé: dá seu jeito, burocrata!
O próprio Paes sucumbe ao vício do bate-boca público, via redes sociais, com seus críticos. “Estamos abrindo a caixa preta dos ônibus!”, grita ele nas postagens, entre deboches aos detratores. Missão inegavelmente fundamental – que não vence a vergonha de o Rio de Janeiro viver o vexame permanente de (em pleno 2025, não se esqueça) ter modais que “não se falam”.
Vem aí mais um verão – e não precisa bola de cristal para saber que a terra carioca ainda terá ônibus circulando em péssimo estado, sem a refrigeração tão essencial como a calefação no inverno do Hemisfério Norte. Aliás, na estação fria, a climatização vira algoz dos usuários, submetidos a temperaturas excessivamente baixas ao longo da viagem. Parece piada, mas não tem graça nenhuma.
O Rio não é pior do que outras metrópoles no Brasil, todas unidas no descaso com o povo mais pobre, que precisa da condução. Em qualquer lugar, ônibus em péssimo estado integram a paisagem urbana. A pior consequência foi aferida em São Paulo, logo a cidade mais populosa: o transporte privado – basicamente carros e motos por aplicativo – superou o uso de ônibus, metrô e trem. A pesquisa Origem Destino 2023 visitou 32 mil domicílios de 39 cidades da maior região metropolitana do país e aferiu que 51,2% dos deslocamentos diários foram cumpridos pelos Ubers da vida. Derrota para o bem-estar em várias camadas.
Rigorosamente todos os governantes estão na obrigação de se envergonhar diante da incompetência para alterar a realidade que se mantém indestrutível. Para as donas Vicentinas, eles só materializam estresse, sofrimento, perda de tempo e serviços horríveis. Um cenário que é tudo, menos passageiro.
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