Efeitos ‘a longo prazo’ da tragédia afundam população em decadência psicológica e física

'Luto, incerteza sobre o futuro, perdas materiais e emocionais e redução da renda agravam sintomas depressivos decorrentes do abandono e da desesperança', relata especialista em saúde moradora na região devastada

Por Gabi Coelho | ODS 11ODS 12ODS 15 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 06:19 • Atualizada em 29 de janeiro de 2024 - 12:34

Pórtico no acesso a Córrego do Feijão: mau gosto e constrangimento. Foto Aydano André Motta

Pórtico no acesso a Córrego do Feijão: mau gosto e constrangimento. Foto Aydano André Motta

'Luto, incerteza sobre o futuro, perdas materiais e emocionais e redução da renda agravam sintomas depressivos decorrentes do abandono e da desesperança', relata especialista em saúde moradora na região devastada

Por Gabi Coelho | ODS 11ODS 12ODS 15 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 06:19 • Atualizada em 29 de janeiro de 2024 - 12:34

Há cinco anos, desde o fatídico 25 de janeiro de 2024, a vida na região de Brumadinho tornou-se um calvário cotidiano, especialmente na zona rural da cidade e nos municípios ao longo da bacia do rio Paraopeba. Desafios imensuráveis se levantam devido à criminosa tragédia ambiental do rompimento da barragem de Córrego do Feijão, pertencente à Vale. Luana Prata teve a vida atravessada duplamente pela catástrofe. Doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), residente na zona rural de Brumadinho, ela se tornou integrante da Comissão de Barragens da Região 1 e ativista ao acesso à saúde pública de qualidade. As palavras dela refletem não apenas a experiência pessoal, mas também a luta de uma comunidade que enfrenta a negligência persistente, a falta de reparação adequada e a busca incansável por justiça.

Leu essa? O especial pelos cinco anos da tragédia em Córrego do Feijão

A seguir, a entrevista de Luana Prata:

#Colabora: Como residente da zona rural de Brumadinho e membro ativo da comunidade, quais as mudanças que ocorreram em sua vida desde o rompimento da barragem em 2019?

Luana Prata: Este crime, que persiste de forma continuada, desrespeita a participação social e a concessão de uma reparação adequada, comprometendo irremediavelmente a qualidade e as condições de vida. Um crime iniciado em 2019 e ainda em curso aflige a população com sofrimento e crescentes problemas de saúde.

#Colabora: Como esses impactos na saúde se manifestam ao longo dos anos?

Luana Prata: Além das lesões físicas substanciais e das perdas, a população enfrenta disfunções respiratórias, alterações urinárias com infecções recorrentes, lesões dermatológicas de difícil tratamento e cicatrização, complicações oftalmológicas e males gastrointestinais, entre outras patologias observadas em diversos indivíduos residentes nos municípios afetados a jusante ao rompimento. A exposição às substâncias tóxicas presentes nos rejeitos de mineração, lançados de forma abrupta sob a forma de lama densa, ceifando vidas e esperanças, persiste nos sedimentos que se acumulam nas cidades e residências e influencia cada enchente nas estações de chuva. Esses eventos acarretam exposição prolongada e contínua a esses agentes nocivos, contribuindo para a contaminação hídrica por microrganismos do esgotamento, metais pesados e outras substâncias prejudiciais. Aqui, surgem distúrbios neurológicos decorrentes da deposição desses elementos no sistema nervoso central. A associação dessa exposição às condições precárias de vida pós-crime resulta no agravamento da saúde, com risco aumentado de mutações genéticas e posteriormente desenvolvimento de cânceres e patologias crônicas.

Outdoor oferecendo psicólogo nos postos de saúde: população necessitada de saúde mental. Foto reprodução
Outdoor oferecendo psicólogo nos postos de saúde: população necessitada de saúde mental. Foto reprodução

#Colabora: Existe envolvimento da população nas decisões com a mineradora?

Luana Prata: Não. O trauma associado ao descumprimento de um acordo firmado em sigilo [pela Vale], sem a participação da população para determinar as demandas e ações efetivas, culmina na ausência de reparação ambiental, socioeconômica e na saúde ao longo destes cinco anos. Isso contribui para a deterioração progressiva e significativa na saúde mental da população, diante da incerteza em relação ao futuro, das perdas materiais e emocionais, da redução da renda e sustento familiar, do luto, e do agravamento dos sintomas depressivos decorrentes do abandono e da desesperança. 

#Colabora: Você mencionou também o agravamento da saúde mental da população. Como esse aspecto tem evoluído?

Luana Prata: A ruptura da estrutura social, a alteração da dinâmica comunitária, o isolamento social e a perda dos meios de subsistência geram estresse financeiro e social, contribuindo para o aumento da ansiedade e depressão. Há crescimento do alcoolismo, do uso de drogas, de diversos tipos de violência – em especial a doméstica -, suicídios, surtos psicóticos, novos casos de hipertensão e crises alérgicas, entre outros distúrbios funcionais. O sofrimento humano é evidente ao longo da calha do rio Paraopeba, de Brumadinho a Três Marias, com gradações distintas. A população que enfrenta desafios na saúde mental apresenta agravamento constante, levando ao aumento do número de suicídios e tentativas. A percepção da negligência, o sentimento de injustiça, a falta de celeridade das autoridades em atender às demandas de uma população que clama por direitos, dignidade e vida, bem como a falta de responsabilidade da empresa, intensificam sentimentos de raiva, ressentimento, desconfiança, descrença e desesperança.

#Colabora: Considerando todos esses desafios, como a comunidade tem lidado com a busca por justiça e reparação?

Luana Prata: A negligência e a ausência de reconhecimento, de indenizações adequadas e de assistência eficaz alarmam as condições psicológicas, com uma piora gradativa e preocupante. Além disso, a falta de efetividade em todo o processo e a desorganização dos serviços de saúde pública causam devastação emocional generalizada em nossas comunidades. Os temidos efeitos “a longo prazo” de um crime cometido impunemente estão presentes, afundando nossas comunidades em decadência psicológica e física. Mesmo com o desânimo diante da falta de ações efetivas por instâncias maiores, nossa luta persiste impulsionada pela força de uma população unida e ávida por justiça e livre de violações aos nossos direitos.

Gabi Coelho

Jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê. Dedica-se a impulsionar uma comunicação comprometida com a sociedade, através do jornalismo e do ativismo. Tem experiência em mídias independentes e tradicionais, como Estadão Verifica, Projeto Comprova, Globo Minas, Voz das Comunidades, Ponte Jornalismo, Projeto Colabora, Revista Azmina e outros. Foi jurada do prêmio Vladimir Herzog. Teve também experiências internacionais. Em 2018, foi uma das oito jornalistas brasileiras das favelas e periferias que participaram de intercâmbio em Medellín, Colômbia, conectando-se com mídias independentes e participando de workshops e exposições no Festival Gabriel García Márquez. Em 2023, participou do intercâmbio IVLP nos Estados Unidos, no Programa Edward R. Murrow para Jornalistas – Pesquisa e Investigação, juntamente com profissionais brasileiros, moçambicanos e portugueses.

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