Chuvas no Sul: reconstrução impõe repensar ocupação urbana e rural

Especialistas apontam importância de reduzir degradação ambiental e investir em infraestruturas resilientes

Por Micael Olegário | ODS 11ODS 13 • Publicada em 28 de maio de 2024 - 09:19 • Atualizada em 22 de julho de 2024 - 09:41

A cidade de Roca Sales destruída pela terceira enchente em oito meses: repensar formas de ocupação urbana e rural no trabalho de recuperação (Foto: Nelson Almeida / AFP – 15/05/2024)

O Rio Grande do Sul nunca mais será o mesmo. Essa é a percepção de moradores e especialistas após o maior desastre ambiental da história do estado. As chuvas e enchentes varreram cidades, lavouras e deixaram um saldo de destruição: 2,3 milhões de pessoas afetadas em 469 municípios, com mais de 160 vidas humanas perdidas, sem contar inúmeros animais. Diante dessa realidade, uma pergunta se impõe: como reconstruir o estado de forma mais resiliente a eventos extremos?

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Alguns locais, como o município de Roca Sales no Vale do Taquari, foram afetados por três grandes enchentes no intervalo de apenas 8 meses. A situação leva gestores e especialistas a pensarem na necessidade de bairros inteiros mudarem de lugar, uma vez que, com o aumento da degradação ambiental ligada às mudanças climáticas, a tendência para o futuro é de extremos de chuva e seca mais frequentes e intensos.

“Como sociedade organizada, podemos buscar alternativas e soluções para enfrentar o problema. Ou também, pode se decidir não fazer nada, do tipo: ‘tapar o sol com a peneira’, adiar a responsabilidade de resolver algo no presente para o futuro”, aponta Oscar Agustín Torres Figueredo, professor de Engenharia florestal da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O resultado de fechar os olhos para a crise climática está sendo conhecido de perto no Rio Grande do Sul, principalmente por grupos mais vulneráveis como: refugiados, mulheres e crianças, comunidades tradicionais e pessoas com deficiência

Esse evento vai mudar o estado para sempre; é impossível que as coisas permaneçam iguais. Nosso modelo de produção primária será o mesmo? Vamos reconstruir no mesmo local? Impossível. Só se fôssemos pessoas que colocam a mão em uma chama, se queimam e repetem o gesto esperando um resultado diferente

Rafaelo Balbinot
Professor de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria

Pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o sociólogo Victor Marchezini elenca alguns elementos básicos para a construção de infraestruturas resilientes, algo crucial para diminuir a vulnerabilidade de cidades e comunidades. “Quando falamos em gestão de risco de desastres, estamos falando nas etapas de prevenção e de mitigação, considerando não só as ações estruturais: como construção de moradias em lugares seguros, melhoramento da drenagem urbana, contenção de encostas, mas soluções baseadas na natureza que possam permitir também a recuperação, por exemplo, de bacias hidrográficas degradadas”, explica o pesquisador e coordenador Projeto Cope/Fapesp, criado justamente para analisar lacunas na prevenção de desastres.

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Ainda de acordo com Victor Marchezini, existe um conjunto de fatores ligados ao projeto político-econômico de ocupação dos territórios que agravou a tragédia, para além das chuvas e das mudanças climáticas. “Dentre as causas do desastre socioambiental podemos mencionar o desmatamento ilegal e a ocupação de áreas de preservação permanente, processos induzidos pelas políticas, ou a ausência delas que permite a degradação da bacia hidrográfica”, descreve o sociólogo.

Conforme apontam diferentes especialistas ouvidos pelo #Colabora, a reconstrução do Rio Grande do Sul passa por identificar as raízes ambientais, sociais, econômicas e políticas do desastre. Além disso, explicam os pesquisadores, esse processo precisa levar em consideração o contexto de mudanças climáticas e a necessidade de repensar formas de produzir e construir.

Porto Alegre invadida pelas águas do Guaíba: necessidade de mudanças na ocupação do solo (Foto: Gustavo Mansur / GovRS - 15/05/2024)
Porto Alegre invadida pelas águas do Guaíba: necessidade de mudanças na ocupação do solo (Foto: Gustavo Mansur / GovRS – 15/05/2024)

Mudanças na produção agrícola e na ocupação do solo

Os grandes volumes de chuva que atingiram o Rio Grande do Sul foram intensificados pelas mudanças climáticas, um fenômeno global gerado, principalmente, por gases do efeito estufa emitidos por países desenvolvidos (Estados Unidos, China e Europa), além do desmatamento no caso do Brasil. “Tivemos um extremo, no entendimento técnico, muito extremo, que é como as mudanças climáticas se manifestam”, descreve Rafaelo Balbinot, professor de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Esses eventos climáticos severos resultam de fatores globais e locais, onde ações humanas nacionais e internacionais intensificam as condições adversas.

O futuro é muito duvidoso para não dizer sombrio. A questão é quem é que vai ter coragem de fazer esse debate com agricultores, que obviamente querem ter suas vidas reconstituídas, ter renda e segurança. O problema é que se não houver uma mudança no sentido dos investimentos e do modelo produtivo, isso vai se dar ao custo de aumentar ainda mais a vulnerabilidade dos agricultores e de todo mundo

Paulo Niederle
Professor de Sociologia Rural da Universidade Federal de Rio Grande do Su

A preservação de matas ciliares é crucial para mitigar ou agravar esses efeitos. No desastre de setembro de 2023 no Vale do Taquari, a expansão urbana e agrícola nas margens dos rios amplificou os danos. Cidades e lavouras avançaram em direção aos rios, agravando os impactos do desastre. Agora, o problema afetou diversas cidades também da região metropolitana de Porto Alegre, construída nas margens do Guaíba, inclusive, com áreas aterradas.

Rafaelo Balbinot acredita que a organização das cidades e dos sistemas de produção deve mudar. Infraestruturas de maior valor e potencial impacto ambiental não podem estar em áreas alagáveis. “Quantos galpões levados pela água continham estoques de agroquímicos, máquinas, sementes, etc.? Onde está tudo isso agora? No rio,” aponta ele. Cidades com infraestruturas ainda mais caras e mais vidas humanas também precisam ser protegidas.

“Esse evento vai mudar o estado para sempre; é impossível que as coisas permaneçam iguais. Nosso modelo de produção primária será o mesmo? Vamos reconstruir no mesmo local? Impossível. Só se fôssemos pessoas que colocam a mão na chama, se queimam e repetem o gesto esperando um resultado diferente”, enfatiza Rafaelo.

Lavoura de arroz de assentamento do MST alagada: modelo agroecológico como alternativa à monocultura que vem provocando desmatamento dos biomas e assoreamento dos rios (Foto: Divulgação / MST)

Digitais do agronegócio na crise climática

De acordo com Paulo Niederle, professor de Sociologia Rural da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), o modelo de produção baseado na monocultura, a exemplo do que vem sendo feito historicamente no RS e que se expandiu para o Brasil, com impactos severos em outros biomas como o Cerrado, leva a degradação da vegetação nativa do Pampa e Mata Atlântica, e assim reduz a capacidade de resiliência do solo e dos ecossistemas a eventos climáticos extremos.

Nesse sentido, conforme indica o professor da UFRGS, mais do que somente financiar iniciativas de agroecologia e recuperação de matas ciliares, é necessário criar barreiras para a expansão do modelo de monoculturas para exportação. “O futuro é muito duvidoso para não dizer sombrio. A questão é quem é que vai ter coragem de fazer esse debate com agricultores, que obviamente querem ter suas vidas reconstituídas, ter renda e segurança. O problema é que se não houver uma mudança no sentido dos investimentos e do modelo produtivo, isso vai se dar ao custo de aumentar ainda mais a vulnerabilidade dos agricultores e de todo mundo”, explica Paulo Niederle.

Nessa busca incessante pelo retorno econômico, o agronegócio realiza uma guerra contra a natureza. Isso faz perder a noção de que o ser humano é parte da natureza e que essa guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo

Oscar Agustin Figueredo
Professor da UFSM

Oscar Agustín Figueredo, da UFSM, comenta algo parecido e lembra que, antes da expansão das áreas cultivadas de soja, a agricultura praticada no estado possuía baixo impacto ambiental. Voltando mais ainda no tempo, é possível perceber que as raízes do desastre estão no modo de colonização dos imigrantes europeus. “Essas áreas florestais já eram ocupadas por indígenas e caboclos que viviam em relativa harmonia com a natureza”, contextualiza o especialista.

“As terras que agora desabam dramaticamente no Sul do Brasil, levada pelas chuvas  torrenciais, foram integradas ao sistema capitalista de produção para o mercado  internacional há 200 anos. Não por coincidência, o mapa da enchente é o mesmo da região originária das matas de araucária”, exemplifica Maria da Glória Lopes Kopp, doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC), em artigo no Sul21.

Ainda que a contribuição do agronegócio gaúcho em termos globais de mudanças climáticas seja pequena, os efeitos locais na degradação ambiental, com avanço sobre áreas de vegetação nativa, tornam esse modelo agroexportador insustentável. “Os desequilíbrios ambientais, manifestados pelos eventos extremos que observamos, têm as digitais do agronegócio que se sustenta na monocultura”, complementa o professor Oscar Agustín Figueredo.

O pesquisador da UFSM salienta que, mesmo que um futuro pior em termos de eventos extremos seja inevitável, existem ações políticas e práticas concretas para mitigar desastres. “Nessa busca incessante pelo retorno econômico, o agronegócio realiza uma guerra contra a natureza. Isso faz perder a noção de que o ser humano é parte da natureza e que essa guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo”, destaca.

Conforme Oscar Agustín Figueredo, repensar o uso dos solos é essencial, tanto para evitar grandes perdas na produção em eventos extremos, como para mudar de um “modelo de agronegócio que não alimenta o Brasil, desestrutura as cadeias alimentares e produz impactos significativos no meio ambiente e na saúde das pessoas”, para um sistema agroalimentar em equilíbrio com a natureza.

Bairro alagado em Pelotas, no sul do estado: recuperação precisa levar em conta aspectos sociais, ambientais e geográficos (Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil)

As cidades e a educação para desastres

Além de uma mudança no modelo de ocupação do solo para as lavouras e agricultura, a forma como o desastre afetou áreas urbanas evidencia a necessidade de atenção para as infraestruturas das cidades. Um dos problemas centrais apontados por Victor Marchezini, do Cemaden, é a negligência com a Defesa Civil. Reportagem da Agência Pública mostra que, na maioria dos municípios atingidos pelo desastre, o órgão é ocupado por pessoas sem experiência e sofre com a falta de recursos e políticas públicas. 

De acordo com o especialista, autor de livros como “Abandonados nos Desastres” e “Processos de Recuperação em Desastres”, outro ponto importante para a reconstrução do estado está em considerar as diversidades das pessoas e comunidades afetadas. Para isso, Victor defende a realização de audiências públicas e orçamentos participativos como alternativas para evitar que a reconstrução das cidades seja guiada pelos interesses do mercado imobiliário e aprofunde ainda mais desigualdades sociais.

O desastre socioambiental também demonstra o modo como projetos de Estado mínimo ficam vulneráveis a situações de extremos climáticos. “Você começa a ver que a importância de ter um Estado com instituições fortes, com garantias, um Estado mais de bem-estar social que é o que o Rio Grande do Sul vai precisar nesse momento da reconstrução e recuperação”, acrescenta o pesquisador do Cemaden. 

Outra etapa necessária para a gestão de riscos de desastres está em incluir o tema nas salas de aula, seja por meio da educação climática ou mesmo de uma educação para desastres. “As ações de recuperação envolvem a reconstrução material, mas também a recuperação psicossocial das comunidades e todos os grupos sociais atingidos”, finaliza Victor Marchezini.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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