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Carnaval 2025: enredos com raízes africanas são maioria na Sapucaí
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Mais da metade das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro vão levar temas ligados à cultura e à religiosidade do povo negro para a Passarela
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Quando entrar na Passarela do Samba da Marquês de Sapucaí, na noite de domingo (02/03), com o enredo ‘Egbé Iyá Nassô’ e a história do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, fundado em Salvador pela ialorixá Francisca da Silva, a Iyá Nassô, a Unidos Padre Miguel, de volta ao Grupo Especial após 52 anos, estará reforçando uma tendência dos últimos carnavais: a predominância de enredos valorizando as raízes africanas do Brasil, a cultura e a resistência do povo negro. Mais seis escolas (das 12 da elite do Carnaval do Rio) tem enredos afro, como costumam definir alguns; outras duas homenageiam personalidades negras – o cantor e compositor Milton Nascimento, na Portela, e o carnavalesco (e muitas outras coisas) Laíla, na Beija-Flor.
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Apesar de terem as mesmas raízes africanas, os enredos são muito diferentes: a Imperatriz Leopoldinense mergulha na história dos orixás ao contar a peregrinação de Oxalá para visitar Xangô; a Mangueira vai mostrar o lado Pequena África do Rio de Janeiro, contando a resistência dos povos que foram capturados do outro lado do Atlântico e escravizados no Brasil; o tema da Unidos da Tijuca é Logun-Edé, um príncipe dos orixás fruto do amor entre Oxum e Oxóssi; o enredo Corpo Fechado, do Salgueiro, é inspirado na espiritualidade afro-brasileira; a Paraíso do Tuiuti vai contar a história de Xica Manicongo, nascida no Congo, escravizada no Brasil, primeira mulher trans documentada por aqui; e o tema da Unidos do Viradouro, atual campeã, é Malunguinho, líder quilombola, cultuado como entidade afro-indígena, dona das chaves que abrem as senzalas.
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Veja o que já enviamosA Viradouro, aliás, venceu o Carnaval 2024 com o enredo ‘Arroboboi, Dangbé’, falando das serpentes que são objeto de culto na tradição africana. “Como é bonito assistir tantos enredos negros e todos completamente diferentes. Como é importante a gente refletir sobre a marca da negritude na construção da cultura brasileira como algo diverso, imenso, ainda totalmente inexplorado na sua plenitude”, afirmou o carnavalesco do Salgueiro, Jorge Silveira, em recente entrevista ao site Carnavalesco.
Na Unidos de Padre Miguel, os carnavalescos da escola campeã da Série Ouro em 2024, Lucas Milato e Alexandre Louzada, explicam que a decisão de contar a história de Iyá Nassô e sua trajetória na fundação do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho – considerado o primeiro terreiro de candomblé do Brasil, e o primeiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1984. – veio a partir de uma preocupação de dar visibilidade a personagens esquecidos pela história, que sofreram um apagamento cultural no Brasil e até na África. “Hoje existe um movimento muito forte de resgate dessa cultura africana, porque somos um país de maioria com descendência africana”, disse Louzada à Agência Brasil. Iyá Nassô, da corte do Império de Oyó, veio para o Brasil escravizada e manteve a religiosidade, enfrentando preconceitos e perseguições, até inaugurar o primeiro terreiro de candomblé do Brasil.

Campeã no ano passado, a Viradouro também levará aos holofotes da Passarela do Samba a história muito pouco conhecida de um líder quilombola do século 19, que se tornou símbolo da conexão entre as culturas afro e indígena. Com o enredo “Malunguinho: O Mensageiro de Três Mundos”, a escola de Niterói vai contar essa história, passada em Pernambuco, na primeira metade daquele século. “O quilombo do Catucá era foco de resistência e viu seu último líder, João Batista, o Malunguinho, ser duramente perseguido por seus atos libertários”, explica a sinopse do enredo, que vai destacar a resistência e a conexão entre as culturas afro e indígena. O líder quilombola teria aprendido com indígenas o segredo da força das ervas e outros segredos das matas.
Outro personagem pouco conhecido da história brasileira que vai desfilar na Marquês de Sapucaí é Xica Manicongo, considerada a primeira travesti não-indígena do país, uma mulher trans escravizada, nascida no Congo, que viveu em Salvador, no século 16. De acordo com a sinopse do enredo quem tem medo de xica Manicongo, a escravizada trans trabalhou como sapateira na capital baiana e relatos históricos apontam que ela não aceitava o nome masculino e os trajes masculinos e se vestia de acordo como mulher, com um pano amarrado ao corpo. Xica foi violentamente reprimida na época, acusada de sodomia e condenada à morte pelo Tribunal do Santo Ofício, queimada viva em praça pública. Ativistas trans vão desfilar pela Paraíso do Tuiuti.
Outros enredos afro do Carnaval 2025 estão ligados à religiosidade. Logun-Edé – Santo Menino que Velho Respeita, da Unidos da Tijuca, conta a história da divindade cultuada pelas religiões de matriz africana conhecida como “príncipe dos orixás”. Segundo a tradição iorubá, Logun-Edé é filho de Oxum, orixá associada à pesca e à água doce, e Oxóssi, relacionado à caça e às florestas. O desfile da Unidos da Tijuca contará com a cantora Anitta, que tem Logun-Edé com seu orixá de cabeça no candomblé e é uma das autoras do samba enredo.

Na Imperatriz Leopoldinense, vice-campeã em 2024, o enredo se baseia na saga contada pelo Itã (relatos míticos da cultura iorubá), sobre o desejo de Oxalá de visitar Xangô. No entanto, ao longo do percurso, Oxalá enfrenta uma série de obstáculos que o levam a uma conclusão de viagem diferente daquela que ele havia imaginado ao sair de Ifón, seu reino, em direção a Oyó, terra onde Xangô é soberano. O carnavalesco Leandro Vieira, sempre lembrando que há quase 50 anos a Imperatriz não abordava temas afro, contou que o enredo nasceu em resposta a uma demanda da comunidade, combinada com sua vontade pessoal de celebrar as raízes africanas e religiosas da escola.
O enredo Salgueiro de Corpo Fechado também remete às religiões de matriz africana como candomblé e umbanda e o próprio samba – o mais baixado do Carnaval 2025, na plataforma Spotify – tem expressões como quiumba (espírito sem luz, da umbanda) e mojubá (saudação no dialeto yorubá). O enredo passará por práticas espirituais ancestrais herdadas da África, como banhos de ervas e os talismãs trazidos pelos malês durante a Revolta na Bahia, no século 19, mas também alcançará outras derivações religiosas que também tem rituais de fechamento de corpo.
A lista de enredos com raízes africanas termina com o foco carioca da Mangueira que apresentará na Marquês de Sapucaí o enredo À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões, levando para a Passarela do Samba um olhar sobre a presença dos povos bantu na cidade do Rio de Janeiro. “É uma narrativa baseada na historicidade preta de forte cunho social”, explicou a escola no comunicado de divulgação do enredo. Os povos bantu representaram a maioria dos negros escravizados e trazidos ao Cais do Valongo, na Pequena África. A Mangueira retratará a vivência dessa população em toda a cidade, mostrando como sua história em solo carioca.
Com viés de negritude nos enredos da Portela sobre Milton Nascimento e da Beija-Flor sobre Laíla, ele mesmo criador de temas carnavalescos com raízes africanas, as exceções no desfile das escolas de samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro vão ficar por conta da Unidos de Vila Isabel, com o enredo ‘Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece’, que nos fizeram perder o sono, da infância à fase adulta, de lobisomem a curupira; da Grande Rio, com um enredo de pegada indígena, financiado pelo Governo do Pará: ‘Pororocas Parawaras: As Águas dos Meus Encantos nas Contas dos Curimbós’, e da Mocidade Independente, com o enredo ‘Voltando para o Futuro – Não Há Limites pra Sonhar’ propondo uma grande reflexão sobre o futuro tão sonhado.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade