A crise do Estado do Rio de Janeiro, governado por Luiz Fernando Pezão, faz cada dia mais vítimas. Em risco, não apenas serviços essenciais para a população. Patrimônios intangíveis, como quatro mil metros de documentos do Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, também estão correndo perigo, dada a importância do acervo, que tem o registro nacional do Programa Memórias do Mundo, da Unesco. O material está guardado num prédio na Praia de Botafogo, na zona Sul da cidade, que está totalmente às escuras. A Light cortou a luz desta e de outras instalações do governo do Estado do Rio, que tem uma dívida de R$ 120 milhões com a companhia.
O corte ocorreu no último dia 24 de abril. A paralisação atingiu não apenas os serviços ao público do Arquivo, mas, sobretudo, os sistemas de prevenção de incêndio, de controle de umidade e de climatização do setor de fotografia. Uma situação que ameaça algumas preciosidades, entre elas a maior e mais importante coleção de documentos do país sobre a repressão das polícias políticas brasileiras, do Estado Novo ao fim da Ditadura Militar.
Com o prédios às escuras, o Comitê Brasileiro do Programa Memórias do Mundo está de olho na instituição:
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Veja o que já enviamos– O comitê faz, periodicamente, consultas, por meio de instrumento próprio, às instituições que custodiam acervos inscritos no registro nacional do programa para efeito de acompanhamento. Na última, realizada no ano passado, o Arquivo do Estado do Rio de Janeiro não registrou nenhuma ocorrência com o acervo sob sua responsabilidade. Em função das notícias recentes, informo que estamos enviando correspondência para que a instituição possa atualizar as informações sobre o acervo inscrito – disse o presidente do comitê, Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor do Museu Imperial de Petrópolis.
Sem solução
O Governo do Estado, por sua vez, limitou-se a responder ao #Colabora, por meio de nota de sua assessoria de comunicação, que a “Secretaria de Estado de Fazenda e Planejamento está em negociação com a concessionária para regularizar o pagamento e restabelecer o serviço”. Já a diretora do órgão, Teresa Bandeira de Mello, que aguarda a negociação, disse que ainda não há uma previsão de data para que a normalização do serviço.
[g1_quote author_name=”Paulo Knauss” author_description=”presidente do Museu Histórico Nacional” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O material fotográfico é o mais vulnerável. Os negativos são muito frágeis e qualquer dano a eles é irreversível. O papel sofre prejuízos, mas é possível, com dinheiro, recuperá-lo. Material fotográfico não
[/g1_quote]Enquanto uma solução não chega, o Arquivo segue fechado, sem serviço de limpeza, essencial para a prevenção a pragas e a conservação dos documentos, e com o material fotográfico, mais sensível à umidade e à variação de temperatura, correndo perigo – um risco que pode significar o pagamento de parte da memória ali guardada.
– O material fotográfico é o mais vulnerável. Os negativos são muito frágeis e qualquer dano a eles é irreversível. O papel sofre prejuízos, mas é possível, com dinheiro, recuperá-lo. Material fotográfico não – alertou o professor da UFF e ex-diretor do Arquivo Paulo Knauss, hoje presidente do Museu Histórico Nacional, que foi coordenador da pesquisa iconográfica, realizada na instituição, que deu origem ao livro “Nos tempos da Guanabara: 1960-1975, uma história visual”.
Memória apagada
Mas a cereja do bolo do acervo é, com certeza, a coleção de documentos sobre a repressão política, que mereceu, por sua relevância, o registro internacional do Programa Memórias do Mundo. Esses documentos foram essenciais para os trabalhos das comissões Nacional e Estadual da Verdade (CEV-Rio), que apuraram graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988, e ainda o são para cidadãos que buscam ter os danos vividos no período reconhecidos pela Comissão da Anistia e reparados pelo Estado.
A pesquisadora Ana Carolina Antão, ex-assessora da CEV-Rio, destaca a importância do Arquivo para este trabalho, lembrando que o Rio teve uma centralidade na política do período tão grande, que os órgãos de repressão que funcionavam no Estado foram depositários de muitos documentos referentes a outras unidades da federação. Desta forma, o acervo do Rio foi importante não apenas para a comissão estadual, que, conta, teve até uma sala no Arquivo para facilitar o trabalho de seus pesquisadores.
O relatório final da CEV-Rio, concluído em 2015, também pode ser encontrado no Arquivo, que, nos próximos meses, vai receber todo o acervo da comissão. São mais de 150 horas de depoimentos, mais de três mil documentos recolhidos em arquivos públicos ou entregues por testemunhas e mil documentos produzidos ao longo de quase três anos de apuração.
Mas não é apenas o interesse na memória da repressão política que o público vai ao arquivo, que recebe em média 110 pessoas por mês em suas instalações. Estão guardados em suas instalações também os documentos da Província do Rio de Janeiro, tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Estadual, as fotografias produzidas pela Comunicação Social do Estado da Guanabara, documentos do Governo do Estado, muitas vezes procurados por servidores em processo de aposentadoria, e registros de terra, de estrangeiros e civis.
A paralisação do Arquivo traz ainda transtornos para a própria administração pública, que depende dele para gerar as senhas dos servidores que acessam os serviços do protocolo. São em média 350 senhas por mês, como informam os relatórios da instituição, publicados no portal do Governo do Rio, que têm prazo de validade. Se elas não forem renovadas, os servidores passam a ficar impedidos de dar continuidade à tramitação de processos administrativos, assim como os cidadãos e pesquisadores estão impedidos de ter acesso às informações ali guardadas. Uma situação que traz prejuízos para todos.