Agricultura indígena movimenta comércio em Aquidauana

Da manga ao milho, feira indígena em Aquidauana movimenta comércio de hortifruti (Foto: Naine Terena)

Além de gerar renda, produção familiar de algumas aldeias é doada para creches indígenas

Por Naine Terena | ODS 11ODS 12 • Publicada em 21 de janeiro de 2020 - 08:00 • Atualizada em 8 de novembro de 2023 - 10:45

Da manga ao milho, feira indígena em Aquidauana movimenta comércio de hortifruti (Foto: Naine Terena)
Da manga ao milho, feira indígena em Aquidauana movimenta comércio de hortifruti (Foto: Naine Terena)

Iara Chimene, 64 anos, mãe de três filhas, é indígena Terena e feirante. Há mais de 30 anos, faz a venda de frutas e verduras plantadas na aldeia Limão Verde, localizada na cidade de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. Junto a outras mulheres, Iara desenha a história da agricultura indígena, que movimenta e abastece o comércio local com frutas e verduras.

A relação do povo Terena com o comércio e a produção agrícola tem sido registrada desde o século XVII, como relatou Visconde de Taunay, durante a Guerra do Paraguai. Hoje em Aquidauana, as feirantes têm dois espaços para comercialização. Um próximo à estação ferroviária e outro nas proximidades da rodoviária da cidade. Algumas também se deslocam para Anastácio, uma cidade vizinha onde falta infraestrutura adequada para realizar as vendas. Os produtos e algumas feirantes também costumam ir até a capital Campo Grande. “Eu tenho meus próprios clientes. Desde as freguesas que encomendam e vêm buscar na feira até alguns supermercados, padarias, lanchonetes“, explica Iara.

Iara Chimene, 64 anos, há mais de 30 anos faz a venda de frutas e verduras plantadas na aldeia Limão Verde (Foto Naine Terena)

As mulheres rurais são responsáveis por 45% da produção de alimentos no Brasil e nos países em desenvolvimento, segundo dados da ONU. Na maioria dos casos, o trabalho segue do campo para uma jornada dentro das comunidades e de casa. No caso das mulheres indígenas esse cenário não é diferente. Soliene Barros, 33 anos, sabe bem disso. Enquanto os filhos, o marido e o cunhado fazem a retirada, transportam a carga e ensacam o alimento, ela realiza suas atividades na aldeia. No dia seguinte, ainda escuro, entra no ônibus das feirantes, que começa a circular na aldeia a partir das 3h. São 18km de estrada de chão até Aquidauana. Neste dia, a mercadoria de Soliene já estava encomendada, embora, ela também venda para os clientes avulsos. Às 15h, o ônibus começa a se preparar para retornar a aldeia.

Assim como Iara e Soliene, as outras feirantes comercializam mandioca, produto forte da região. De acordo com o Mapa de oportunidades, editado pelo Sebrae/MS em 2016, a cultura temporária no município de Aquidauana se concentrou em 2013 no cultivo do alimento, que ocupou 51% da área de culturas temporárias. Embora o mapa não especifique onde estão localizadas essas plantações, a movimentação diária das feirantes demonstra a contribuição das aldeias para o fluxo do alimento na cidade. Outros dados que estão sendo levantados por instituições locais apontam também a circulação de dinheiro vindo dos indígenas no comércio de Aquidauana. Com a venda dos produtos, os indígenas compram roupas, calçados, pagam a energia elétrica (rural) e alguns alimentos que não são produzidos na aldeia, além de remédios e exames, por exemplo.

Leozenilda Dias sempre sustentou a casa com o dinheiro das vendas realizadas nas feiras (Foto: Naine Terena)

Leozenilda Dias sempre foi feirante. Sustentou os filhos com o dinheiro das vendas realizadas nas feiras. Como algumas outras, ela tem um carrinho que leva pela cidade para que os clientes possam comprar os produtos na porta da casa. Sonia Maria Gabriel, 62 anos, também aposta no carrinho e não pretende abandonar a rotina de ir para a feira tão cedo. Os filhos ajudam no plantio.

O comerciante Ramão Jesus Avalos explica que, semanalmente, seu estabelecimento recebe cerca de 10 quilos de mandioca de uma das feirantes: “A comunidade indígena coloca produtos de qualidades nas mesas da nossa população”.

Além da mandioca, outros alimentos circulam nas feiras indígenas, como frutas, verduras diversas, leite, doces e afins. A oferta depende do período de produção e colheita. Algumas comunidades fazem apenas a venda interna, como é o caso da aldeia Aldeinha, do município de Anastácio. Segundo a professora Evelin Hekere, do Centro Estadual de Professores Indígenas de Mato Grosso do Sul, nessa horta são produzidas hortaliças sem agrotóxicos. A comercialização tem sido feita dentro da própria aldeia com preço justo, além de ser doada para a escola indígena, que atende a todas as crianças da comunidade. Nesse caso, a produção foi incentivada por um projeto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da Agraer.

Outra iniciativa tem sido implementada em Limão Verde de maneira autônoma pelos próprios indígenas. Além de plantar os alimentos comumente cultivados, o grupo também capta outras sementes como o arroz e o milho, que já conta com pelo menos três espécies diferentes, conforme explica o professor Valdevino Cardoso, da Escola Estadual Indígena Pascoal Leite Dias. As sementes são adquiridas em feiras de trocas de sementes e têm sido resguardadas pelo grupo, que aposta na produção e comercialização pautadas no comércio justo.

Na Aldeinha, parte da produção é doada para a escola indígena (Foto: Marinez Rodrigues Campos)

A melhoria da infraestrutura de alguns pontos de venda, como a instalação de um banheiro na estação ferroviária, é uma das demandas das indígenas, que muitas vezes chegam à cidade às 4h e só retornam para a aldeia às 15h. A disponibilização de um restaurante popular e a construção de um espaço de vendas em Anastacio são outras solicitações que ajudariam a melhorar a geração de renda das famílias.

Judith Mendes Pereira conta que aprendeu a ser feirante com a mãe, num processo típico da educação indígena no qual filhos acompanham os pais nas atividades. “Eu saía com a bacia na cabeça, ia caminhando. Às vezes, alguém falava ‘lá vai a índia’. Eu não me importo. Eu sou Terena mesmo”.

A nova geração, no entanto, pode não continuar o trabalho, mas os indígenas não veem prejuízo nisso: “Pode estudar, pode sair e morar na cidade. Só não pode se esquecer de onde saiu. Não pode esquecer que e índio“, finaliza Iara.

Naine Terena

Naine Terena é natural de Cuiabá/MT e formada em Comunicação Social pela UFMT. Doutora em Educação, é docente na Faculdade Católica de Mato Grosso. Foi assessora de imprensa na Secretaria de Estado de Comunicação de Mato Grosso e na Secretaria de Estado de Cultura e também professora substituta no Curso de de Rádio e TV da UFMT. Atualmente é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Multimundos Brasil e produz trabalhos jornalísticos para projetos/veículos ambientais e culturais, através da Oráculo Comunicação, educação e cultura. É uma das organizadoras do livro "Povos Indígenas no Brasil: Perspectivas no fortalecimento de lutas e combate ao preconceito por meio do audiovisual"

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