(Paula Bianchi, Natalie Alcoba e Li Yedan*) – Por trás das paredes verde-oliva e da bancada laranja, a gordura de uma chapa chama a atenção. Em um canto, há uma máquina de refrigerante com marcas tradicionais; em outro, a hashtag #BeTheChange (“seja a mudança”, em inglês) em destaque na parede. E, no fundo, Agustín Amarilla tem em sua mesa de plástico reciclado dois hambúrgueres macios. Na parte de cima de cada brioche, há um sorriso marcado. O lanche parece feito com carne vermelha, tem textura e sabor familiares, mas não tem nenhuma grama dela: é uma receita com base vegetal, rica em proteínas.
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Amarilla, programador de 24 anos, foi criado no subúrbio de Buenos Aires com uma alimentação tipicamente argentina, na qual o churrasco de domingo era uma tradição seguida religiosamente por sua família. Mas há muito que ele questiona a moralidade de uma dieta baseada na matança de animais e diz já ter cortado a carne de porco. No horário de almoço, ele e um amigo visitaram a Joy Burgers & Plants, primeira rede de fast-food vegana da América Latina, para provar um dos famosos hambúrgueres à base de plantas. Uma refeição como essa, diz ele, seria impensável alguns anos atrás.
“Sanduíche de presunto, choripán [cachorro-quente de linguiça]… tudo tem carne”, diz Amarilla. “Um restaurante vegano é uma novidade. E como tantas outras coisas novas, ganha adeptos aos poucos”.
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Veja o que já enviamosO fato de o Joy Burgers & Plants ter sido inaugurado na Argentina — país cuja identidade está intrinsecamente ligada à carne bovina — é um reflexo da mudança nos padrões alimentares globais.
Além de economias mais voláteis às mudanças climáticas, crescem as preocupações com o meio ambiente, a saúde e o bem-estar animal. Países ricos que historicamente impulsionaram o consumo de carne agora veem uma estagnação nesse mercado. Enquanto isso, lugares como Argentina e Brasil, onde a carne bovina tem um peso cultural e econômico importante, as dietas vegetarianas estão em ascensão.
Uma pesquisa de 2019 encomendada pela União Vegana da Argentina descobriu que 9% dos cerca de mil entrevistados se identificavam como veganos ou vegetarianos. Um ano depois, esse número havia subido para 12% — o que, na população argentina, representaria mais de cinco milhões de pessoas. Já outros 12% se consideravam “flexitarianos” — pessoas que reduziram ao máximo seu consumo de carne, mas não a abandonaram completamente.
Ao todo 14% dos brasileiros eram vegetarianos em 2018, de acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira. Em 2022, segundo a entidade, 46% da população havia cortado pelo menos um dia de carne consumida na semana.
“O paradigma da alimentação está mudando”, diz Matias Cabrera, coproprietário do Joy Burgers & Plants. A empresa abriu cinco filiais em Buenos Aires em apenas seis meses e já planeja expandir o negócio para o Chile. “As novas gerações estão nos dando um recado sobre nossos hábitos de consumo e nossa relação com o planeta”, acrescenta.
O papel da carne bovina
Apesar das mudanças de comportamento, a carne continua no topo das escolhas alimentares de grandes áreas do planeta. Em 2022, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estimou que a produção mundial de carne em geral poderia chegar a 360 milhões de toneladas anuais, aumento de 1,4% em relação a 2021, sendo 74 milhões de toneladas de carne bovina.
Enquanto a América do Norte e a Oceania reduzem a carne vermelha em suas refeições, a China, segundo maior consumidor de carne bovina do mundo, viu um aumento com a expansão de sua classe média. Países como Índia, Paquistão, Filipinas, Vietnã e a região da África Subsaariana também devem aumentar seu consumo de carne, diz a FAO, que relaciona o fenômeno a um salto na renda média e no crescimento da população. O consumo global de carne per capita deve aumentar 2% até 2032, taxa semelhante à da década anterior, projeta a organização.
A FAO explica que o impacto ambiental da produção de carne bovina, bem como o desmatamento causado pela pecuária, leva cada vez mais consumidores a optar por frango ou outras opções menos agressivas ao meio ambiente. “Há uma tendência crescente entre consumidores do mundo todo de ter mais sensibilidade com o bem-estar animal, o meio ambiente e a saúde. E as aves têm uma menor pegada de carbono”, diz a estimativa para 2032.
A economia é outro fator. Tanto o Brasil quanto a Argentina registraram quedas no consumo per capita de carne bovina na última década. As mudanças no comportamento do consumidor e nos preços do produto no Brasil, maior exportador de carne bovina do mundo, estão relacionadas aos ciclos de produção e ao aumento da demanda da China desde 2019, diz Thiago Bernardino de Carvalho, pesquisador de pecuária da Escola Agrícola da Universidade de São Paulo.
Entre 2016 e 2019, o aumento da produção no Brasil fez com que o preço da carne bovina no mercado interno caísse e o consumo aumentasse, explica Carvalho. Com preços mais baixos, os produtores começaram a investir menos em carne bovina. E a diminuição da oferta levou a um novo aumento nos preços. Entre 2020 e 2022, o preço da carne em geral subiu 30% no Brasil, de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), um dos indicadores oficiais da inflação no Brasil. Em 2023, o IPCA caiu quase 6%.
“A preferência do brasileiro é pela carne bovina, mas, se ele não tem renda, ele não compra”, diz Carvalho. “Quando você tem o aumento de PIB, de renda, o consumidor volta a consumir proteína. Isso no Brasil e em todo o mundo”.
A tendência também é visível na Argentina, assolada por uma longa crise econômica e lutando contra uma das maiores taxas de inflação do mundo — que escalou 124% em agosto na comparação com o mês do ano anterior. Embora a quantidade de carne bovina consumida no país tenha aumentado recentemente, chegando a 53 kg per capita em 2023, ela permanece bem abaixo dos 67 kg per capita do período 2007–2009. O Ministério da Agricultura da Argentina diz que as exportações de carne bovina aumentaram 13% nos primeiros cinco meses de 2023, em comparação com o ano passado. O crescimento foi impulsionado pela alta demanda da China, que compra 78% da carne bovina produzida pela Argentina.
Numa média per capita, os chineses comem cerca de um terço da quantidade de carne bovina consumida no Reino Unido, um sexto do que os americanos e brasileiros consomem e um nono da dieta média dos argentinos. As proteínas suína e de frango são tradicionalmente preferidas à bovina na China, mas o aumento da renda média e a mudança de hábitos alimentares, bem como a baixa oferta interna, impulsionaram o aumento das importações de carne bovina do país, que cresceram cerca de 25% em 11 anos, segundo a FAO, para mais de 4 kg por ano por capita em 2022.
“A vaca tem uma importância significativa na cultura chinesa desde os tempos antigos, simbolizando o trabalho árduo, a mansidão e a abundância”, diz Z*, 44 anos, moradora de Beijing e vegetariana há 11 anos. Enquanto trabalhava na área de desenvolvimento sustentável, Z identificou uma mudança em sua “percepção sobre a vida” e começou a sentir que “adotar uma dieta vegetariana era uma boa escolha, principalmente evitando o consumo de seres vivos”.
Embora ela não enxergue uma forte adesão ao veganismo ou vegetarianismo na China, também não sentiu nenhuma reação negativa dos chineses. Em cidades maiores, os vegetarianos podem encontrar restaurantes que oferecem pratos com proteína à base de soja, preparados com métodos tradicionais da culinária chinesa, acrescenta. O que falta, diz Z, é uma melhor compreensão de como a alimentação está ligada à conservação florestal.
Para Deng, 37 anos, cortar totalmente o consumo de carne foi mais difícil. Ela parou de comer carne bovina por três anos, mas depois entendeu que essas restrições só “aumentaram seu desejo por carne”.
Além disso, diz, a culinária chinesa dificulta a mudança, já que há poucos pratos exclusivamente vegetarianos na China, e muitos restaurantes usam óleos de origem animal. “É possível consumi-la até acidentalmente, especialmente quando se come fora, o que é muito comum na vida urbana”, diz Deng.
“Acredito que ainda não houve uma discussão séria sobre vegetarianismo na China. A maioria acha ser algo que só os monges praticam”, diz ela. “Pensam: a vida é curta, então eu como o que eu quero”, acrescenta.
Na favela de Paraisópolis, em São Paulo, uma pequena barraca de comida resume o fascínio pelo churrasco no Brasil. Funcionando dentro de uma garagem, Erbenes Alves, de 43 anos, e Geanes Maria de Souza, 46, vendem cortes de carne e frango assado, o produto mais pedido pelos clientes. Perto dali, outros açougues lotados anunciam os preços com megafone para atrair pedestres.
Na favela, a relação entre preço e consumo é direta e instantânea. Alves consegue medi-la não apenas pelas vendas, mas pela fumaça: quando os preços caem, as ruas ficam cobertas pela fumaceira das churrasqueiras. Como alimento tradicional, muitos brasileiros têm dificuldade de abandonar a carne bovina, mesmo quando os preços sobem: “Nunca pensei em cortar”, diz Cleiton Araújo, pintor de casas que segura um espetinho de carne.
A tradição é um osso duro de roer. Em uma casa no bairro de Villa Urquiza, em Buenos Aires, um grupo de amigos se reúne em torno das grelhas fumegantes de um asado de domingo. Na brasa, há uma variedade de cortes de carne bovina, chouriço, frango e legumes. Eles não estão ali por amor à carne, mas pelo prazer de compartilhar esse momento enquanto discutem política, economia e questões familiares.
O médico Ervin Jesus diz que consome carne bovina porque é saborosa, fácil de preparar e, segundo ele, ainda é a opção mais barata para uma refeição nutritiva.
“Há quem diga: ‘vamos plantar alface para não matarmos as vacas’. Mas para plantar alface, você ainda precisa transportá-la, o que consome combustível e polui”, diz o médico de 41 anos. “Sendo bem objetivo, não vejo uma realidade em que possamos comer orgânicos sem contaminar o país”, defende.
Apesar dessa percepção, estudos demonstram que um pedaço de 50 gramas de carne vermelha está associado a pelo menos 20 vezes mais emissões de gases de efeito estufa do que uma porção de cem gramas de vegetais. Além disso, o gado usa cem vezes mais terras.
De volta ao Brasil, no bairro paulistano da Pompéia, Maria Pia Banchieri reflete enquanto experimenta iscas de carne em um bar com amigos. “Ao reduzir meu consumo de carne, comecei a me alimentar melhor”, diz a publicitária e professora de 51 anos, que consome carne bovina duas ou três vezes por semana, geralmente quando come fora de casa. “Faço marmitas que agora são muito mais variadas [do que minha dieta anterior]. Também sinto que minha saúde melhorou”.
Realidade em transformação
Para Manual Martí, vegano há 49 anos, a mudança rumo a uma dieta baseada em plantas já é um fenômeno em curso. Ele fundou a União Vegana da Argentina há 20 anos, em uma época em que, segundo ele, ninguém sabia o que significava ser “vegano”. “Encontrar outro vegetariano era um acontecimento”, enfatiza.
Agora, ele chama o veganismo de “a maior revolução na história da humanidade”, porque seria algo “global, pacifista, amoroso e baseado em uma posição ética”.
Quando as pessoas começam a entender as estatísticas relacionadas ao consumo de produtos de origem animal, diz ele, “elas se conscientizam, refletem e mudam seus hábitos. E isso é incontrolável”.
Embora seja uma mudança que ocorre de baixo para cima, Martí acredita que seria muito mais forte se o Estado se envolvesse diretamente. Mas isso ainda parece fora de cogitação. Sua organização tentou várias vezes fazer com que o governo de Buenos Aires incorporasse opções veganas ou vegetarianas nas escolas públicas, sem sucesso. Enquanto isso, o Instituto para a Promoção da Carne Bovina tem um concurso chamado “Paixão pela Carne Argentina”, que incentiva estudantes a estudar o setor pecuário.
“Todos os dias, [os alunos] comem algum tipo de animal. Talvez o prato tenha purê de batatas, mas estão comendo carne bovina, suína, de peixe ou frango”, diz Marti, reforçando que o veganismo é discriminado — apesar dos alertas de organizações internacionais e cientistas climáticos sobre o impacto da pecuária como um dos grandes emissores de gases de efeito estufa.
Mesmo assim, a grande oferta de informações sobre as opções veganas e a transformação no comportamento dos consumidores são evidentes, diz Marti: “Hoje, depois de duas décadas, todo mundo tem um vegano em sua família ou em seu círculo de amigos. É incrível!”.
Para Matias Cabrera, dono do Joy Burgers & Plants, seus restaurantes são uma questão de inovação, não de ativismo. Ele não é vegano, mas um de seus dois sócios, sim. Seu público-alvo é de um consumidor não-vegano, mas disposto a experimentar coisas novas. O objetivo deles é acabar com a ideia de que a comida vegana não é gostosa, e eles fazem isso de forma bastante honesta. “Não somos uma rede de comida saudável, mas recriamos os sabores, as texturas e as experiências das grandes redes de fast-food que frequentávamos quando éramos jovens”, explica o empresário.
“Acreditamos que ninguém nasça vegano, mas se torne vegano por uma questão de ideais”, diz Cabrera. “Estamos buscando uma revolução alimentar e convidamos todo mundo a fazer parte disso”.
*A entrevistada pediu para não ser identificada por motivos profissionais, apontando para aspectos sensíveis de conversar com a imprensa estrangeira na China.