O poder de transformação do breaking nas histórias de uma b-girl e um b-boy brasileiros

O b-boy Leony em Belém: vida transformada pelo breaking (Foto: Fabio Piva / Red Bull Content)

Apesar da estreia como esporte nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o breaking, nascido na periferia, também é dança, cultura e modo de vida

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 10 • Publicada em 26 de agosto de 2024 - 08:40 • Atualizada em 2 de setembro de 2024 - 11:18

O b-boy Leony em Belém: vida transformada pelo breaking (Foto: Fabio Piva / Red Bull Content)

Nathana Venancio, de Uberlândia (MG), conheceu o breaking aos 12 anos, em 2008, por incentivo de um professor de dança. Ele a levou a um local chamado “Comunidade Hip hop”, onde pessoas treinavam a dança urbana, e a apresentou o Red Bull BC One em gravações de DVD, maior campeonato de breaking do mundo — o mesmo no qual ela seria finalista em etapa estadual, 13 anos mais tarde.

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Com movimentos que envolvem força, equilíbrio, flexibilidade e ritmo, o breaking é uma dança e esporte que combina movimentos rítmicos, com passos rápidos e complexos, incluindo giros no chão, saltos e congelamentos em poses desafiadoras. “Desde que conheci, me apaixonei pela dança”, conta a b-girl (como são chamadas as dançarinas da modalidade) – hoje, com 33 anos, artista, atleta, produtora e influenciadora digital. 

A b-girl Nathana em apresentação: virada na vida com o breaking (Foto: Ignacio Aronovich / Red Bull)
A b-girl Nathana em apresentação: virada na vida com o breaking (Foto: Ignacio Aronovich / Red Bull)

Nos primeiros anos em que se apaixonou pela dança, descobriu que a inclinação para fazer parte da cultura hip-hop — que inclui o rap, o DJ, o grafite e o break — estava no sangue. “Minha mãe contou que meu pai também dançava breaking. Ele faleceu e não me viu dançando, mas saber disso foi uma motivação ainda maior para continuar. E eu me lembro que, quando vi a primeira vez, os meus olhos brilharam e eu decidi que era isso que eu queria fazer”, conta Nathana, que perdeu o pai quando tinha apenas cinco anos de idade. 

Acredito que o breaking tem esse poder porque ele atinge vários nichos sem distinção. Para aprender a dançar, pode ser desde criança, como aconteceu comigo, até idoso. Não tem limite de idade, gênero, raça. A nossa cultura abraça todo mundo

Nathana
B-girl

Essa motivação a ajudou a enfrentar a ausência do professor, que mudou de cidade quando ela começou a treinar breaking, a timidez e o fato de os treinos serem num ambiente predominantemente masculino. “Eu era uma criança, nessa época ainda brincava de boneca. Então eu não tinha muita maturidade, e minha família ficava receosa porque os treinos eram três vezes na semana e iam até dez horas da noite”, conta Nathana. Apesar dos desafios, não demorou para ela participar de competições nacionais e internacionais. 

Nathana já esteve em mais de 15 países para disputar em batalhas de breaking, competições que a levaram a acumular títulos. Um dos mais marcantes, segundo ela, foi a final do campeonato mundial de breaking Red Bull BC One São Paulo. “Foi na pandemia, em 2021. Tivemos que fazer testes de covid para competir e o público não estava presente: assistiam de um telão do lado de fora, todo mundo de máscara”. Era uma situação atípica para quem estava acostumada com arenas repletas de torcedores e um clima coletivo de torcida que, segundo Nathana, tem uma “energia que influencia na performance”. 

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“Ele tem um poder de transformação muito grande na vida das pessoas”, diz a b-girl sobre o que a modalidade representa. Numa mistura entre cultura, modo de vida, esporte e profissão, o breaking para Nathana é uma ponte que possibilita a mudança de vida de pessoas em situação econômica mais vulnerável. “Acredito que o breaking tem esse poder porque ele atinge vários nichos sem distinção. Para aprender a dançar, pode ser desde criança, como aconteceu comigo, até idoso. Não tem limite de idade, gênero, raça. A nossa cultura abraça todo mundo”, afirma.

O b-boy Leony em competição de breaking: de treino nas ruas de Belém a colecionador de troféus em disputas nacionais e internacionais (Foto: Divulgação)

Amor à primeira vista na infância do b-boy Leony

A história de Nathana se assemelha com a do paraense Leony Pinheiro, 28 anos, que conheceu o breaking quando tinha 11 anos. Seu primo passava pela praça de São Braz, em Belém, onde as pessoas se reuniam aos sábados para dançar. “Ele disse para mim ‘eu vi uma dança que os caras giram em cima da cabeça e ficam saltando, tem música’, e a gente foi ver o que era. Na época, eu lutava caratê, mas não era uma coisa que me aflorasse de verdade. Quando vi o breaking pela primeira vez, aquela energia, a galera junto, foi amor à primeira vista”, conta.

Ser um b-boy não é só competição, ganhar troféu, medalhas. Ser b-boy é um protesto humano, tá ligado? É jogar todo o seu sentimento através do movimento. Antes de tudo, sou um moleque que descobriu o talento no breaking e fez disso o seu trabalho

Leony
B-boy

Não demorou muito para Leony, o primo e alguns amigos se unirem para formarem uma crew — coletivo de pessoas que treinam juntas — chamada “Estilo do Guamá”. Mas durou apenas cerca de três meses, porque o grupo conseguiu passar nas audições para participar da escolinha de breaking do Projeto Social Curumin, realizado pela Amazon Crew. Desde então, já foram 16 anos no ramo para Leony: “O breaking é a minha filosofia de vida. Meu senso crítico e a maneira que olho para qualquer situação vem muito do que o hip hop me ensinou”. 

Em sua história, o b-boy (como são chamados os dançarinos da modalidade) enfrentou desafios como a dificuldade financeira e o preconceito das pessoas por não entenderem a vida que ele escolheu, principalmente longe de São Paulo, onde o breaking se iniciou no Brasil e tinha mais oportunidades. Leony morava em Ananindeua, cidade na periferia de Belém. Trabalhou desde a adolescência: foi reparador de bicicletas, camelô, ajudante de pedreiro e pintor.

Não tinha um espaço reservado e próprio para treinar, então treinava nas ruas, e já chegou a ser mandado embora pela polícia por dançar nas calçadas. Para seguir na escola de breaking, saiu do colégio em Ananindeua para estudar em Belém e conciliar os horários: acordava às 4h da madrugava e só voltava à noite.  Mas continuava por amor, e com o apoio da mãe, que juntava dinheiro para pagar as aulas, e dos amigos, conseguiu seguir seu sonho. E, a partir dos 18 anos, começou a se sustentar só com o breaking. 

Hoje, Leony é um dos principais nomes no cenário e já ganhou cinco vezes o Red Bull BC One Brasil. O paraense se considera “sempre b-boy, às vezes atleta” e se dedica totalmente ao breaking. “Ser um b-boy não é só competição, ganhar troféu, medalhas. Ser b-boy é um protesto humano, tá ligado? É jogar todo o seu sentimento através do movimento. Antes de tudo, sou um moleque que descobriu o talento no breaking e fez disso o seu trabalho”. 

Os b-boys Leony e Rato e as b-grils Nathana e Mini Japa na chegada a Santiago da equipe brasileira para os Jogos Pan-Americanos 2023: breaking ganha novo status como esporte olímpico (Foto: CBDD)

Esporte olímpico mas sem brasileiros em Paris

O breaking vive um momento histórico nos últimos anos. Nathana e Leony são atletas que integram a primeira Seleção Brasileira de Breaking, formada em 2022 pela Conselho Nacional de Dança Desportiva (CNDD). Segundo o b-boy, o breaking já tinha um ecossistema próprio com circuitos de campeonatos nacionais e mundiais, mas após ser reconhecido como esporte nos últimos quatro anos, tudo mudou. “Foi uma luz no fim do túnel. Há uns anos, eu incentivaria meu filho a dançar, mas não a viver de break, porque eu queria que ele vivesse bem. Hoje essa é uma possibilidade de carreira maior do que quando eu comecei.”

No cenário internacional, o esporte tem recebido maior reconhecimento e visibilidade após inclusão em competições, como a estreia nos Jogos Pan-Americanos de 2023 em Santiago e nos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires, em 2018. Após participação na capital argentina, a modalidade foi escolhida para integrar o programa de esportes olímpicos de Paris 2024. Na Place de La Concorde, nos dias 9 e 10 de agosto, 32 atletas competiram pelo ouro, em rodadas um contra um, em que os jurados avaliaram o desempenho com base na técnica, variedade de movimentos, criatividade, personalidade, performance e musicalidade. Os primeiros campeões olímpicos de breaking foram o b-boy canadense Phil Wizard (Phillpe Kim), e a b-girl japonesa Ami Yuasa. 

Trabalhamos nessa ideia de que  o breaking não combina com drogas, com alcoolismo. De certa forma, já é um recorte olímpico, pensando na trajetória de atletas de alto rendimento

Lucky
B-boy, arte educador

Mas, entre os b-boys e b-girls em Paris, nenhum brasileiro. Nenhum atleta da Seleção Brasileira de Breaking alcançou a classificação para participar dos Jogos Olímpicos de 2024. “Antes da classificatória olímpica (Olympic Qualifier Series), foi feito um ranqueamento mundial, a partir de pontos acumulados em outras competições nacionais e internacionais. Para mim, foi um pouco injusto, porque muitos atletas da Europa e da Ásia conseguiram ir ao máximo de eventos possíveis em 2022 e somaram pontos para esse ranqueamento mundial, o que nos deixou um pouco para trás”, explica a b-girl Nathana, que não conseguiu atingir os pontos necessários.

Leony e b-girl Mini Japa – como é conhecida a também paraense Mayara Collins – da Seleção Brasileira de Breaking chegaram ainda mais perto ao disputarem as últimas vagas em Budapeste, na Hungria, no dia 22 de julho. Os dois conseguiram, respectivamente, alcançar as posições 29° lugar e 31° lugar no ranqueamento, mas perderam na segunda fase do Torneio Qualificatório de Breaking. Apesar de não conseguirem avançar, Leony se sente esperançoso com o futuro olímpico do esporte. “Todo esse processo olímpico que participei foi muito prazeroso e maravilhoso, e eu pude ver que o país tem potencial para chegar e ganhar, ser campeão olímpico. A gente pode e eu sei que a gente vai chegar na Olimpíada representando o Brasil”, afirma. O breaking ficou fora da programação dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028, mas deve voltar em Brisbane 2032.

A participação brasileira foi dificultada pela decisão da WDSF (World Dancing Sports Federation), que propôs o breaking como esporte olímpico e conseguiu a aprovação do COI, de apontar a Conselho Nacional de Dança Desportiva, filiado à entidade internacional, como responsável pela organização do esporte para Paris 2024. Porém, desde 2017, os atletas de breaking se organizam em torno da Confederação Brasileira de Breaking (CBRB). “A confusão toda foi porque quem estava no prisma do COB era uma confederação que nunca teve envolvimento com o breaking, o Conselho Nacional de Dança Desportiva, voltado para Dança de Salão. De lá para cá não teve acordo, a gente teve reuniões presenciais, mas não adiantou”, critica Rooneyoyo (José Ricardo Freitas Gonçalves), presidente da CRDB e um dos criadores da Batalha Final, competição organizada no Brasil desde 1999,

Rooneyoyo argumenta que o correto seria que uma organização já envolvida com o cenário do breaking fosse escolhida. “Venho do Hip Hop e não acredito que as pessoas têm que comandar a gente, temos que ter autonomia. Quando chega a oportunidade da gente fazer as coisas por nós mesmos, quem toma conta são pessoas que nunca pisaram na favela, num campeonato de breaking, que não sabem como é a nossa realidade”, reclama.

O b-boy Lucky em apresentação em São Paulo: breaking nasceu na periferia de Nova York e, no Brasil, cresceu em grupos periféricos com a cultura hip-hop (Foto: Arquivo Pessoal)

O breaking no Brasil e o espírito olímpico

O breaking surge no começo dos anos 70, em Nova Iorque — especificamente no Bronx, onde viviam pessoas negras e latinas. ““O início do breaking, num momento que as pessoas entendem o que estão fazendo, é a partir de 1973, com uma inspiração do gênero musical Soul para o Rap”, explica o b-boy Lucky (Tiago Santana), 33 anos, arte-educador e coreógrafo.

No Brasil, chega nos anos 1980, no que Rooneyoyo chama de “febre do breakdance”. Nesse contexto, vem por comerciais, filmes como o Wild Style (1983), e a moda. O Largo São Bento, no centro de São Paulo, é um local muito importante nessa febre, pois era onde as primeiras gerações da cultura hip hop no Brasil se reuniam. “Desde então as pessoas começaram a perceber que era maior do que elas. A história foi sendo feita basicamente aqui em São Paulo, então a gente considera São Bento um polo de referência. Daqui saíram nomes muito fortes, como o Racionais MC’s, Sampa Crew, MC Jack e Nelson Triunfo”, conta Lucky, membro do Back Spin Crew, formado em 1985 e considerado o mais antigo grupo de breaking ainda em atividade. 

O momento histórico de se pensar o breaking como esporte nos Jogos Olímpicos foi pauta de debates profundos da própria comunidade do hip hop. Lucky explica que o breaking é uma ferramenta de potência nas periferias, porque trabalha a juventude com a perspectiva de que é necessário cuidar do corpo e da mente como um atleta. “Trabalhamos nessa ideia de que  o breaking não combina com drogas, com alcoolismo. De certa forma, já é um recorte olímpico, pensando na trajetória de atletas de alto rendimento”, conclui.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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