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A encantadora feira de humanidades chamada Olimpíada

Muito além de façanhas esportivas, atitude dos atletas transforma o megaevento em uma irresistível pororoca de emoções - o inverso do neurótico e artificial futebol

ODS 10ODS 17ODS 4 • Publicada em 8 de agosto de 2024 - 09:31 • Atualizada em 12 de agosto de 2024 - 09:46

Copa do Mundo é prosa
Olimpíada é poesia

Em verdade, vos digo, querides: a Olimpíada dá de 7 a 1 na Copa do Mundo. Goleada de emoção, pororoca de sensações, torrente de humanidade, sorrisos e lágrimas sem ter fim, para fazer renascer esperanças nessa espécie tão equivocada que domina a Terra. A feira esportiva de fugazes 20 dias, exibe, em sua 33ª edição, agora no verão de Paris, todo o encanto da turma que se entrega ao desafio de superar o próprio corpo – mas revela muito mais das almas e dos sentimentos de quem participa, e brilha.

Leu essa? O custo alto das vitórias para as mulheres

Vai muito além de esporte. A luta por medalhas e recordes, as disputas medidas em segundos (ou décimos ou centésimos ou milésimos), metros (ou centímetros ou milímetros), pontos e notas são a moldura do babado todo. Nos Jogos, vigora um pacto não escrito de entrega e resiliência únicas na aventura humana. Aqui reside toda a preciosidade.

Copa do Mundo é bossa nova
Olimpíada é Carnaval

E a comparação com o outro megaevento esportivo global se consuma em goleada abissal. A Copa é uma reunião de robôs endinheirados e ranzinzas, encastelados em concentrações, na fuga permanente do contato com os mortais. Os boleiros entendem-se vingadores acima do bem e do mal, que não devem satisfações nem cortesia a ninguém. Paranoicos, atravessam a vida farejando detratores e destilando rancor, na tediosa ladainha “contra tudo e contra todos”.

Copa do Mundo é cristã
Olimpíada é pagã

A reverência sorridente de Simone Biles e Jordan Chiles à campeã Rebeca Andrade: uma das grandes imagens olímpicas de todos os tempos. Foto Gabriel Bouys/AFP
A reverência sorridente de Simone Biles e Jordan Chiles à campeã Rebeca Andrade: uma das grandes imagens olímpicas de todos os tempos. Foto Gabriel Bouys/AFP

No caminho inverso, os atletas olímpicos permitem-se humanos ao extremo. Nada melhor para decifrar a virtude do que a coleção de imagens e frases da relação entre as duas rainhas da ginástica artística. A brasileira Rebeca Andrade – O maior atleta olímpicO da história brasileira – e a americana Simone Biles protagonizaram, ao longo dos três últimos jogos, a convivência mais delicada e profícua, num respeito exemplar pela outra.

O incentivo permanente para se superar e, assim, fazer da competição a maior história de excelência decifra como os oponentes dependem um do outro para existir. Rebeca e Simone se igualam a Federer e Nadal, Hunt e Lauda, Ali e Frazier, com o bônus da delicadeza, a reverência permanente, o interesse despojado e sincero no bem estar da outra. A americana incentivou a brasileira nas contusões dolorosas; recebeu de volta a solidariedade nos problemas de saúde mental que atravessou.

No duelo final (será??), sorriram, se elogiaram e competiram – até a imagem deslumbrante, Biles se curvando reverente à adversária, mais jovem, que a superou no solo. A atitude (que contou com a cumplicidade de outra americana, Jordan Chiles, igualmente nobre) está no acervo das imagens mais espetaculares de todos os Jogos, de todos os tempos.

Depois, Rebeca desfilou perícia e categoria ao refletir sobre o racismo brasileiro e do esporte que pratica, concebido originalmente em nome do delírio da supremacia branca. Não fugiu, tampouco tergiversou; ao contrário, cravou, como fez no solo, na trave etc. “Os pretos sempre mostraram sua capacidade, mas nessa Olimpíada estamos tendo muito mais visibilidade. Ser mulher preta no Brasil é algo que me orgulha muito, e percebi que as pessoas também sentem isso, independentemente do meu resultado. Vi muitos comentários dizendo que mesmo sem medalha estariam torcendo por mim. Eu me senti orgulhosa simplesmente por vestir meu collant e estar ali representando meu país. Minha cor nunca me impediu de realizar as coisas, mas foi algo que aprendi dentro de casa. Minha mãe é uma mulher branca que criou outros oito filhos pretos. Ela sempre nos ensinou a nunca abaixar a cabeça por causa da nossa cor. Nunca passei por momentos ruins relacionados a minha cor dentro do esporte, mas meus irmãos já passaram. Às vezes, acho que me dói até mais do que se tivesse sido comigo. Mas eles me fizeram ser mais forte”. Rainha demais.

Copa do Mundo é novela
Olimpíada é cinema

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Os personagens encantadores se multiplicam pelas diversas modalidades, em odisseias por vezes desconcertantes. Como na maturidade de Rayssa Leal, adolescente medalhista do skate pela segunda Olimpíada, ao ensinar que no esporte dela não se torce pela queda das adversárias, apenas para o melhor desempenho de cada uma. Ou na transparência serena das declarações da boxeadora (prata em Tóquio/2021, bronze em Paris/2024) Bia Ferreira.

A judoca Beatriz Sousa com suas medalhas perto da Torre Eiffel: mulheres vêm derrubando clichês, descriminações e obstáculos em Paris 2024 (Foto: COB)

Vitórias têm o condão de alienar, afastar do mundo, mas não entre os atletas olímpicos. “Sou feliz assim, sou linda”, exultou Bia Souza, 135kg, ouro no judô, revelando que aprendeu a gostar do próprio corpo graças ao esporte. “Era muito grande, desde a escola, não me sentia confortável, nunca tive alguém igual a mim”, recordou, após a conquista.

“Não estamos brincando de rebolar”, bradou Caio Bonfim, depois da inédita medalha de prata na marcha atlética, desfecho glorioso para o longo calvário de discriminação e intolerância. “Difícil não foi a prova de hoje, e sim vencer o preconceito”, atestou, narrando que era xingado na rua durante os treinos solitários.

Copa do Mundo é latifúndio
Olimpíada é invasão

O engajamento, aliás, se espalha por países, delegações, provas e atletas. Vítima de ataques homofóbicos, o australiano Campbell Harrison terminou a prova de escalada e foi abraçar e beijar efusivamente o namorado, Justin, na plateia. “Todos os outros atletas beijaram seus parceiros na transmissão ao vivo. Mas quando são dois homens chama a atenção. Isso pode ser algo bom e poderoso”, pregou. “Para todos que estão pensando em se assumir, olhe para isso em termos de alegria, amor e empoderamento”

O australiano Campbell Harrison beija o namorado, após sua prova. Reprodução do Instagram

Medalha de ouro nos 100m rasos (após superar asma e depressão), o americano Noah Lyles ofereceu aulas de geopolítica às prima-donas da NBA – os atletas que, pelo isolamento e arrogância, mais se parecem com os do futebol – ao questionar a grandiloquência de se intitular “campeões do mundo”. “O que mais me magoa é que tenho de assistir às finais da NBA e eles têm ‘campeão mundial’ na cabeça. Campeão mundial de quê? Dos Estados Unidos?”

No mesmo ritmo, Thea LaFond, ensinou empoderamento e identidade após conquistar a medalha de ouro no salto triplo, a primeira da história de seu país, Dominica, pequenina ilha caribenha. Na entrevista coletiva, lecionou sobre geografia para os ignorantes colonizadores. “Vamos começar com o básico. O nome do meu país é Dominica. Não somos da República Dominicana, portanto a pronúncia é diferente. Somos cerca de 70 mil pessoas, nem 7 nem 70 milhões. É uma joia linda no Caribe e fica perto da Martinica e de Guadalupe – o povo francês saberá: são ilhas francesas. Nossos vizinhos incluem ainda Santa Lúcia, Barbados e, mais ao sul, Trinidad e Tobago. Nosso idioma principal é o inglês e, bem, agora temos uma medalha de ouro olímpica. Obrigado”. Alto do pódio (também) em tapa na cara.

.Copa do Mundo nos torna patéticos
Olimpíada é uma selva de epiléticos

Porque os Jogos nunca são somente esporte – diferentemente da rotina do futebol, encarcerada na mesquinharia do resultado em campo e, sobretudo, do ganho financeiro. O esporte mais popular da Terra ainda segue alérgico à diversidade, preso à ilusão de ser um clubinho de héteros cis. Resta, aos LGBT que se aventuram, a violência de se fingir outra pessoa. Só pode ser macho à moda (muito) antiga, que nunca exibe sentimentos nem fragilidades.

A campeã Mayra, em lágrimas, abraça o repórter após a derrota: humanidade. Reprodução TV Globo

Enquanto isso, os atletas olímpicos permitem-se despir armaduras e, assim, serem apaixonantes até nos revezes. Como Mayra Aguiar, três medalhas nas edições anteriores, que, ao ser eliminada na estreia do judô, desabou em lágrimas na saída do tatame. “Eu não queria chorar. Posso te dar um abraço?”, pediu, ao repórter Marcelo Courrege, encenando momento de comovedora sinceridade. (Quem não se emociona está morto por dentro. Ou é do futebol, o que dá no mesmo.)

A riqueza no comportamento dos atletas olímpicos dimensiona quanto o esporte mais popular do Brasil (e do mundo) está dominado pela canalhice. Da alegria à ética, do esforço extremo à entrega inegociável, do despojamento ao orgulho pela jornada, da conexão com a vida real ao engajamento nas agendas mais urgentes, as lições estão aí, prontas para serem aprendidas. Pena que os boleiros são os mais trágicos alunos.

Ai, a Copa do Mundo
Hum, a Olimpíada

(Os versos entre os parágrafos são inspirados em “Amor e sexo”, música de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor, que merece muitas medalhas de ouro.)

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