A resposta das autoridades do Rio a roubos na Zona Sul – cometidos por jovens e flagrados por câmeras – de mandar apreender menores de idade sem documentos provocou uma onda de repúdio reunindo integrantes do mundo jurídico que nem sempre estão do mesmo lado. Defensores públicos, procuradores, advogados e até juízes protestam contra a arbitrariedade e a ilegalidade das medidas da Operação Verão, que já estão sendo contestadas no Supremo Tribunal Federal (STF).
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Nesta quinta (21/12), a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que restabeleça a decisão, de vara da Infância e da Juventude, que proíbe a apreensão de adolescentes por agentes das forças de segurança em situações que não sejam de flagrante de ato infracional ou cumprimento de ordem judicial escrita. No dia anterior, o Ministério Público Federal (MPF) no Rio havia encaminhado pedido no mesmo sentido ao STF – cabe à Procuradoria Geral da República (PGR) avaliar se entra com ação junto à suprema corte, última instância do Judiciário.
A batalha judicial começou semana passada quando a a juíza Lysia Maria da Rocha Mesquita, titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, proibiu a apreensão de menores durante a Operação Verão, de reforço no patrulhamento nas praias do Rio de Janeiro, a menos que seja em situações de flagrante. A juíza atendeu a pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), na ação civil pública contra a Operação Verão, que começou em setembro, coordenada pela PM do Rio com apoio da Guarda e outros órgãos municipais. Entretanto, após flagrantes de roubos cometidos por jovens e da agressão a um empresário que tentou ajudar uma mulher assaltada em Copacabana, as autoridades estaduais e municipais decidiram endurecer os protocolos e apreender qualquer menor de idade sem documentos ou acompanhados em abordagens policiais nos acessos às praias da Zona Sul.
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Veja o que já enviamosNaturalmente, os alvos das abordagens foram adolescentes e da periferia. “Ações como a desenvolvida na Operação Verão reforçam essa estrutura triste e vergonhosa de segregação, exclusão e divisão, cria temores entre a população e incentiva o surgimento de grupos de ‘justiceiros’. Cinge o Rio de Janeiro, quebra a alma do carioca”, escreveu a juíza. O governador Claudio Castro e o prefeito Eduardo Paes recorreram da decisão da juíza que foi revogada, num sábado (16/12), pelo desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
O debate sobre ações arbitrárias da Operação Verão causaram ainda mais indignação no mundo jurídico. A Defensoria Pública protocolou uma Reclamação Constitucional no Supremo, liminar que impeça a apreensão de jovens para fins de averiguação. “Essas apreensões são feitas para averiguação e alcançam, em regra, os adolescentes pretos e pobres. Protocolamos essa reclamação porque o verão começa agora e a decisão do TJRJ permite que as operações desobedeçam a determinação do Supremo”, explicou a coordenadora de Tutela Coletiva da DPRJ, defensora Raphaela Jahara, em entrevista coletiva na tarde desta quinta (21/12).
Na Reclamação, a Defensoria Pública argumenta que o TJRJ feriu uma decisão vinculante do próprio STF, firmada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.446, em 2019. Na ocasião, os ministros da suprema corte do garantiram o direito de ir e vir dos adolescentes ao considerar ilegal as apreensões apenas para averiguação e por perambulação quando eles estivessem desacompanhados ou sem dinheiro, “como se esse fato correspondesse a uma situação de vulnerabilidade social a ensejar intervenção estatal, que deve ser, sempre, excepcional”.
A DPRJ destacou ainda que, no Rio, a Operação Verão acaba por servir como medida de contenção social, que tem por resultado a retirada de crianças e adolescentes dos espaços mais nobres da cidade, numa constante vigilância da população negra e periférica, que é justamente a mais alcançada por esse tipo de intervenção. “A reclamação busca restabelecer a decisão unânime do STF, que veda as apreensões indiscriminadas de jovens, baseadas tão somente nas sua condição social e cor da pele, como vem ocorrendo”, acrescentou o coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, defensor André Castro.
“Orientação alérgica ao estado de direito”
No pedido do MPF, o procurador Julio José Araujo Junior argumenta que o STF já se manifestou sobre o assunto ao julgar improcedentes os pedidos do Partido Social Liberal (PSL) em 2019. Na época, o partido pedia que fosse declarada inconstitucionalidade de alguns itens do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entre eles, a autorização de apreensão de menores de idade apenas em casos de flagrante ou de cumprimento de mandados judiciais. A decisão do STF reforçou que nenhuma criança pode sofrer interferências arbitrárias ou ilegais na liberdade de locomoção. O MPF também já havia recomendado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública que agentes da Força Nacional com atuação no Rio não participassem desse tipo de abordagens.
A mesma preocupação com o “tratamento criminalizante e indiscriminado de crianças e jovens periféricos” foi manifestada em nota pública assinada por mais de 30 organizações e encabeçada por entidades de advogados, juristas e magistrados: a Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, o Instituto Carioca de Criminologia, a Sociedade dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio de Janeiro, Associação Juízes para a Democracia AJD-Rio e a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ.
Os signatários lembram que o ordenamento jurídico brasileiro consagra apenas duas hipóteses de restrição à liberdade de indivíduos: ordem fundamentada de juízo competente ou situação flagrancial de cometimento de crime ou ato infracional. E, por isso, a decisão da juíza “resulta da única leitura possível” dos textos constitucional e legal. “Transborda do ordenamento jurídico brasileiro a pretensão estadual e municipal materializada na chamada Operação Verão, de apreender crianças e adolescentes a pretexto de averiguar a existência de eventual mandado de busca e apreensão ou qualquer outro tipo de pendência”, afirma a nota. “As praias cariocas ainda constituem espaço popular, gratuito, livre e democrático de lazer. Por conseguinte, a limitação que se pretende impor ao direito de ir e vir de milhares de crianças e adolescentes, submetendo-os injustificadamente a medidas de controle do poder penal paralelo, parece-nos uma orientação alérgica ao estado democrático de direito”, acrescenta.
As entidades signatárias afirmam ter visto com “enorme estranheza” que o Tribunal de Justiça, por decisão da Presidência, tenha acolhido como legítimos, legais e regulares os protocolos e práticas documentadas da Operação Verão, permitindo, com isso, que “atores do sistema de justiça criminal atuem na perspectiva de segregar espaços públicos de lazer”, além de violar direitos e garantias individuais de crianças e adolescentes. “Cabe lembrar que, independentemente da decisão proferida pelo juízo da infância do TJRJ, constitui crime de abuso de autoridade ‘decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais'”, destaca a nota, citando a Lei 13.869 de 2019. “A liberdade de ir e vir — às áreas litorâneas da cidade maravilhosa, inclusive — não pode ser limitada por expedientes arbitrários, quaisquer que sejam seus propósitos”, conclui o documento.