Na sexta-feira, 11 de janeiro, operação policial no Complexo do Alemão – agrupamento de favelas na Zona Norte do Rio onde moram pelo menos 70 mil pessoas – provocou o fechamento de 17 escolas e creches municipais, deixando sem aula 5.700 crianças: com tiroteios na região desde madrugada e durante parte da manhã, as unidades de ensino quiseram evitar mais riscos para os alunos. Esse drama, entretanto, está longe de ser rotina: pesquisa lançada dias antes pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com dados da Secretaria Municipal de Educação e do Instituto Fogo Cruzado, revela que, só em 2019, os tiroteios afetaram o funcionamento de mais de mil unidades de ensino no Rio: 74% das escolas cariocas vivenciaram pelo menos um tiroteio no seu entorno, todas com a participação de agentes de segurança pública.
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Pior: de acordo com o estudo, alunos de 5º ano do ensino fundamental que vivenciaram seis ou mais operações policiais neste mesmo ano tiveram uma redução no aprendizado esperado de, aproximadamente, 64% em língua portuguesa e, em matemática, perderam todo o aprendizado que deveriam absorver durante o ano letivo. “Há uma diferença significativa nos resultados acadêmicos nos grupos de crianças com níveis socioeconômicos semelhantes, mas graus distintos de exposição aos tiroteios”, alerta a pesquisa ‘Tiros no Futuro, de 60 páginas, que usa para comparação dados da Prova Brasil.
De acordo com o estudo, este déficit de aprendizagem no 5º ano resulta em uma perda financeira na vida produtiva deste alunado de até R$ 24.698,00, – “valor equivalente a 48 cestas básicas ou 377 botijões de gás ou 13 anos de passagens de ônibus, duas vezes por dia”, como destaca o texto. “A consequência da guerra às drogas na vida de uma pessoa é incalculável. Nosso propósito com este projeto é mostrar que, além do custo orçamentário para o Estado, há o efeito individual na vida do cidadão, o quanto sua capacidade futura de geração de renda e sua mobilidade social podem ser comprometidas”, afirmou a sociólogo Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa e do CESeC.
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Através de convênio firmado com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, a pesquisa avaliou os dados das 1.577 unidades de ensino da rede pública carioca, com um total de 641.534 alunos matriculados em 2019: o ano foi escolhido como referência para os levantamentos por ter sido o último a não ser impactado pela pandemia da Covid-19, que alterou a dinâmica escolar do país. O CeSec explica no estudo que a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida como foco, “devido ao cenário único em território nacional: a frequência de operações policiais, tiroteios e disparos de armas de fogo no cotidiano de certos territórios, inclusive próximos a unidades de ensino”.
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Veja o que já enviamosO cruzamento das informações sobre operações policiais que interferiram na rotina das escolas – como suspensão das aulas ou fechamento da unidade – da secretaria com os dados da plataforma interativa Fogo Cruzado possibilitou a comparação de 32 escolas com pelo menos seis operações policiais no seu entorno em 2019 e 37 que não enfrentaram esse drama no mesmo ano. “Há uma diferença significativa nos resultados acadêmicos nos grupos de crianças com níveis socioeconômicos semelhantes, mas graus distintos de exposição aos tiroteios, quando se consideram as notas da Prova Brasil para o 5º ano do ensino fundamental, além das taxas de reprovação e abandono escolar”, destaca a pesquisa.
Em 2019, o Fogo Cruzado registrou 4.346 tiroteios na cidade do Rio de Janeiro, que resultaram em 569 mortos e 658 feridos. A partir destes dados, foram identificadas 1.154 (74%) unidades da rede municipal de ensino fundamental do Rio afetadas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança pública. O estudo aponta que, em média, as 30 escolas do 5º ano do primeiro ciclo do fundamental mais expostas à violência registraram 19 tiroteios com presença de policiais neste período.
A pesquisa destaca ainda que apenas cinco escolas do primeiro ciclo do ensino fundamental concentram 20 ou mais operações policiais no seu entorno. E quanto mais expostas a violência, mais negro é o perfil dos alunos (77%). Ou seja, é a estrutura do racismo que legitima o terror e sua intensidade nos bairros mais pobres, nas favelas e em suas proximidades. “O racismo é, sem dúvida, elemento central para compreender essa realidade. O racismo produz a legitimação subjetiva do terror de Estado e mantém inalteradas práticas sociais de violência cujo significado jamais é reconhecido no debate público e nas instituições sociais”, aponta ainda o relatório.
Ao mostrar o impacto no aprendizado e na consequente perda de renda, o estudo mostra apenas uma parte dos prejuízos aos estudantes. “Por exemplo, esse jovem, ao concorrer a uma vaga no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), já está em desvantagem em relação aos outros alunos também do ensino público, pelo fato de ter sua aprendizagem comprometida pela guerra às drogas desde sua infância. Essa diferença se perpetua pela vida produtiva do cidadão, reduzindo sua oportunidade de geração de renda. Estamos falando da manutenção da desigualdade e estagnação de mobilidade social como reflexos diretos da ação do Estado”, ponderou Julita Lemgruber.
Tiros no Futuro é a segunda etapa do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”*, que tem como objetivo é incorporar ao debate público uma reflexão sobre os impactos econômicos e orçamentários da legislação sobre tóxicos em quatro áreas específicas: Segurança e Justiça, Educação, Saúde, e Território. Na primeira, estudo calculou em R$ 52 bilhões o impacto da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo.
“Como mostra a pesquisa, a consequência da guerra às drogas na vida de uma pessoa é incalculável. Esse prejuízo afeta o futuro do indivíduo e a sociedade como um todo. E todos perdemos nessa guerra”, acrescentou a coordenadora do CeSec.