O mar secou para Maria voltar; ainda bem

O primeiro encontro de três gerações de mulheres negras da mesma família entre territórios quilombolas no Maranhão e o que é ser uma mulher negra no Brasil

Por Luize França Sampaio | ODS 10 • Publicada em 25 de julho de 2024 - 00:01 • Atualizada em 2 de agosto de 2024 - 08:54

Dona Zuleide com a filha Maria de Fátima: depois de 50 anos, o reencontro de mulheres negras entre territórios quilombolas no Maranhão (Foto: Luize França Sampaio)

Você se lembra da última vez que andou de barco? Para Maria, foi aos 10 anos, numa noite bem quente; ela saiu do Bebedouro, um interior que não existe mais em Bequimão (MA), e foi navegando até São Luís. Da Baixada Maranhense até a ilha, hoje, se leva cerca de 1h30. Mas em 1968, essa viagem parecia que levava a noite inteira, a água turva e fria do rio com uma maré difícil até para os mais experientes, fizeram com que as primeiras palavras da menina ao pisar na capital do Maranhão fossem: “Daqui só volto quando o mar secar”. 

Leu essa? Vinte e cinco de julho e todos os dias

Maria de Fátima era uma menina negra, alegre, de cabelos crespos longos hidratados a base de banha de galinha e perfume. Era a segunda mais velha dos irmãos que conhecia; muito teimosa, saiu de casa fugida para não casar com um velho comerciante rico da região. Sua mãe, Dona Zuleide, era uma mulher de pele mais clara de cabelos lisos e longos, sempre muito bem escovado em um coque cheio. Quando soube da sua partida foi atrás, mas já era tarde, a menina estava decidida. Não queria aquela vidinha, repetia e segue repetindo até hoje.  

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Analfabetas, não tinha carta que mantivesse o laço. Trabalhadoras, não tinha patroa que as deixassem ir embora. E assim a vidinha de cada uma foi seguindo  – dia após dia, ano após ano, década após década – uma distante da outra, cuidando da casa de outras pessoas. 

Cinquenta anos se passaram, uma pandemia entrou em cena. Maria de Fátima, que já morava no Rio de Janeiro, tinha acabado de se recuperar da covid-19 quando sua filha chega com o celular na mão, aponta a foto de uma senhora e pergunta:

 “É a sua mãe?”

Já fazem quatro anos desse dia, mas para quem esperou cinco décadas, esse instante foi agora, ele é o presente. De aniversário, ela ganha uma passagem para onde tudo começou. Primeira vez de avião, primeira vez de férias, primeira vez em um hotel, primeira vez no ferry, primeira vez vendo o sobrinho buscá-la de carro no centro de Bequimão, primeira vez entrando na casa da sua mãe de novo, primeira vez vendo o irmão crescido, primeira vez vendo sua mãe, que agora não anda mais, primeira vez da sua filha pedindo bença para a avó. 

Quando falava da infância, Maria gostava de contar da vez que levou uma surra de cinto do pai. A fivela machucou o olho e ela foi correndo até a sua avó. “Na casa dela tinha uma mangueira enorme em um chão limpinho que a gente chamava de terreiro”, conta Maria. Essa senhora curou seu olho com cuspe de fumo. De outra vez quebrou o ombro brincando, um senhor velhinho da região, que era chamado de Pajé, consertou sua clavícula com folhas coladas todos os dias nos seus braços. 

Esse lugar hoje se chama Quindiua e fica perto do Ramal e Santa Rita, territórios quilombolas no interior de Bequimão, na Baixada Maranhense. Tshiba, 27 anos, sobrinho de Maria que foi criado pela sua mãe, diz que lá não existe racismo porque todo mundo é preto. E ele tem razão. Além de pretos, todos são familiares. Ao ligar o sinal de wi-fi em Quindiua vai perceber isso. Todos os nomes são “Família França”, que é o sobrenome da Maria e também o meu. Convivi a vida toda com fragmentos dessas histórias, tentando fazer conexões sem sucesso e fui para o Maranhão ainda em dúvida, mesmo vendo minha mãe cheia de certezas. Será que cinquenta anos depois ela ia reconhecer a mãe só por uma foto? Eu cheguei a duvidar mas, quando entrei na casa da minha avó, eu vi a minha casa. 

Lá todo mundo tem seu garfo separado como aqui em casa, lá se bebe chá todo dia e tem comida fresca a cada refeição. Entendi porque minha mãe tem tanto medo de chuva, vi alguém amando minha mãe como eu amava, vi gente parecida comigo pela primeira vez na minha vida. 

Minha mãe nunca me falou de quilombo, mas me contou de cura, família, do poder das ervas e os seres das matas. Ela nunca me falou de racismo, mas segurava minha mão bem forte na rua. Não lembro de termos conversado sobre trabalho, mas ela nunca me deixou pensar que eu não entraria em uma faculdade. Para quem achou muito, esse fragmento não é um terço da história da Dona Zuleide, de 81 anos, da Maria de Fátima, de 66, ou da minha, de 28. Essa história nem é nossa, boa parte dela foi forjada pelas situações possíveis. Tem coisas que não vai dar para explicar a vocês. Não é emocionante reencontrar sua mãe, é violento. Mas a doçura teimosa das duas tornou esse momento o mais bonito possível.  

O resto dessa história está espalhada em tudo de mais bonito que mulheres como elas fizeram, me lembro logo do poema Vozes, de Conceição Evaristo. Esse texto é parte culpa dela que me disse uma vez bem séria: conte a nossa história, menina. 

Luize França Sampaio

Do Rio inteiro, Luize é formada em jornalismo na PUC-Rio, através do ProUni, com ênfase em gestão e avaliação de políticas públicas e pós graduanda em jornalismo de dados pelo Insper. É atualmente coordenadora de informação da Casa Fluminense, na organização monitora e incide sobre as desigualdades da Região Metropolitana do Rio a partir dos eixos de raça, gênero, clima e economia.
Instagram: @luizesampaio

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