“A bicha, invertida e vulgar. A voz que calou o ‘cis tema’. A bruxa do conservador”. O trecho do samba-enredo da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti canta sobre a personagem Xica Manicongo, primeira mulher trans já documentada na história do Brasil. O desfile, na madrugada desta terça-feira (04/03), levou à Marquês de Sapucaí não apenas o enredo de título “Quem tem medo de Xica Manicongo?”, desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos, mas também muitas Xicas do Brasil; mulheres trans e travestis que estiveram presentes em diversas alas e carros alegóricos, tanto como homenageadas quanto como participantes ativas nos desfiles.
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“Trazer esse enredo para a sociedade é muito importante porque afirma que a travestilidade e a transfobia não são de agora, temos ancestrais”, conta Andréa Brazil, presidente e idealizadora da Rede Capacitrans, que foi convidada pela escola a participar do desfile. Uma das referências à Manicongo foi a representação como rainha do “Traviarcado”, mesmo nome do carro alegórico em que Andréa Brazil desfilou. Para ela, “a trajetória de Xica Manicongo só mostra o quanto existe historicamente uma imposição social cis-hétero-normativa de binaridade, de ‘macho e fêmea’. Sua história mostra que tudo isso sempre precisou ser desconstruído, e que a intolerância e o preconceito são doenças da humanidade desde sempre, mas sempre resistiremos e existiremos”.
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Veja o que já enviamosA escola de São Cristóvão foi a segunda a entrar na passarela do samba, na terceira noite das apresentações do Grupo Especial, e contou com a participação de diversas pessoas trans e travestis, distribuídas em diferentes setores e alas. Na comissão de frente “Transpassado e Transfuturo”, um dos destaques foi a participação da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), num momento em que um grupo dançou vogue, como na cultura ballroom, simbolizando diversas possibilidades de profissão em múltiplas áreas de atuação, inclusive a presidência da república, como representado pela deputada na performance. Ela chegou a discursar durante a concentração, antes do desfile. “O primeiro país do mundo no assassinato de mulheres como Xica Manicongo terá que olhar a sua história sendo recontada”, afirmou em referência ao ranking global que o Brasil lidera pelo 16º ano consecutivo quanto aos índices de assassinatos contra essa população.

Já a ala “Rainha das Rainhas” foi composta por alunas trans e travestis da Oficina de Samba no Pé, resultado de uma parceria entre a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Paraíso do Tuiuti. Além disso, outras 28 personalidades trans e travestis representaram o empoderamento do Traviarcado no centro da alegoria. A conselheira nacional dos direitos das pessoas LGBTQIA+, Deborah Sabará, também estava nesse carro, e pensou no desafio de levar a história de Xica para a Sapucaí. “Sou uma pessoa que gosta de carnaval, já escrevi enredo, tenho 30 anos de avenida no Espírito Santo. Dessa perspectiva, penso no desafio de conseguir de fato levar a história das travestis. Somos invisibilizadas, usadas e desejadas sexualmente, mas o nosso protagonismo não pode ser visto. Porque quando aparecemos, máscaras caem e desejos acontecem. Esse enredo é muito pertinente e penso o quanto é importante demarcar esse posicionamento, um ato político e corajoso da Tuiuti”, disse.
É preciso fazer com que as escolas de samba de todo o Brasil voltem a ocupar este lugar de acolher e integrar as pessoas trans, porque participamos, estamos nos ensaios, mas muitas vezes nosso protagonismo não é visto. Que o desfile da Paraíso do Tuiuti este ano seja um exemplo para todas as escolas incluírem e recuperarem as nossas presenças
Deborah também fala sobre a responsabilidade e gratidão por ser parte do Traviarcado, porque apesar de já ser muito ligada ao carnaval e ter desfilado inúmeras vezes — somente este ano já foram seis escolas — desta vez representou alguém como ela. “Foi um dos momentos mais ricos da minha vida, e que gratidão de estar ali representando a mim mesma, porque às vezes a gente sai em alguma escola de samba contando outras histórias, mas ali eu estava retratando a minha ancestralidade. Fui para lá para cantar Xica, que era uma travesti. Foi fantástico, apoteótico”, contou.
Para além da presença e a representação de pessoas trans e travestis no desfile, a escola também destacou a conexão de Manicongo com o culto e a ancestralidade indígena. “Xica recebeu acolhimento do povo Tupinambá, possibilitando que ela resgatasse sua religiosidade na matriz de raízes indígenas; com a apresentação das nossas ervas e sementes para que ela conseguisse dar continuidade à sua religiosidade. Essa parte de sua história deve ser valorizada e deve ser mais comunicada”, conta Vahnessa Musch, mulher trans do povo indígena Goitacá e guia de turismo pedagógico que atua na pesquisa e resgate da história indígena carioca. Vahnessa esteve presente no carro “Pombagirismo Pajubá”, alegoria que faz uma ilustração lúdica com exemplos do uso do pajubá (um dialeto secreto usado pela população travesti para se comunicar e se proteger da violência nas ruas).
A conexão e o apoio entre os povos indígenas e o povo preto escravizado no Brasil faz parte da história e deve ter mais visibilidade, segundo ela: “quando a gente pensa em religiões de matriz africana, raramente se vê as pessoas referenciando e reverenciando os indígenas. Falta uma gratidão muito grande, principalmente do movimento negro, em reconhecer que se não somos nós a apresentá-los aos terrenos, a fauna e a flora, para os quilombos acontecerem seria mais difícil”.
Travestis e pessoas trans no Carnaval
As mulheres entrevistadas pela reportagem também comentam sobre as expectativas de impacto do enredo. “É preciso fazer com que as escolas de samba de todo o Brasil voltem a ocupar este lugar de acolher e integrar as pessoas trans, porque participamos, estamos nos ensaios, mas muitas vezes nosso protagonismo não é visto. Que o desfile da Paraíso do Tuiuti este ano seja um exemplo para todas as escolas incluírem e recuperarem as nossas presenças, seja nos barracões das escolas, nos figurinos ou até para pensar em enredos”, afirma Deborah Sabará, também secretaria nacional de direitos humanos da Antra,
Já a trans indígena Vahnessa Musch ficou muito feliz em participar, mas questiona a ausência das mulheres em posições de destaque. Ela exemplifica a situação ao citar a ala “Rainha das Rainhas”, composta por meninas trans em homenagem à primeira rainha de bateria da história das escolas de samba, Eloína dos Leopardos, mas ainda sim não tinha nenhuma musa trans. “Como contar a história de uma travesti e nos locais de maior destaque o protagonismo segue sendo do corpo cis? Também não vi pessoas trans indígenas em destaque em nenhum setor. Foi um primeiro momento, não foi perfeito, mas já é um caminho. A Sapucaí vibrou, todo mundo ficou muito encantado com a nossa presença e participação, mas acho que a gente ainda conseguiria fazer melhor”, afirmou.
Para Andréa Brazil, da Rede Capacitrans, a população trans como tema principal de um enredo manda uma mensagem de luta contra o preconceito. A maior importância da representatividade nesse contexto do carnaval, em suas palavras, é “o reconhecimento da luta de cada uma de nós ligada a maior representante que temos notícia na história. Foi um grande marco de inclusão, resgate de cidadanias e exigência de direitos iguais. Sou grata por termos uma guerreira como Xica Manicongo sendo relembrada. Os inquisidores ainda existem em nossos dias atuais, mas resistiremos como Xica!”.
Xica Manicongo: uma história de resistência trans
O enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti conta a história de Xica Manicongo. Nascida no Reino do Congo, na África, era respeitada como sacerdotisa quimbanda e vivia sua identidade de gênero, até que sua vida tomou um rumo trágico com a escravização. Xica foi sequestrada e trazida para o Brasil, onde foi vendida como Francisco Manicongo a um sapateiro e forçada a vestir roupas masculinas.
Apesar da opressão, Xica recusou-se a renunciar à sua identidade feminina e desafiou as normas coloniais ao continuar a se vestir e se comportar de maneira que expressasse sua verdadeira natureza. Denunciada à Santa Inquisição, foi acusada de feitiçaria e sodomia, e enfrentou a ameaça de ser queimada viva. Para escapar da fogueira, Xica aceitou um acordo que a obrigava a se vestir como homem. No entanto, à noite, ela retomava sua identidade feminina, desafiando as convenções sociais e religiosas. “Para conseguir sobreviver naquele mundo, durante o dia, ela era Francisco Manicongo para a sociedade e, à noite, Xica Manicongo saía escondida pela escuridão noturna para ser ela mesma”, diz trecho do enredo.
Segundo o desenvolvimento o enredo, após a morte, Xica foi acolhida pelas pombas-giras, tornando-se uma entidade protetora das pessoas marginalizadas. Já o samba, de Claudio Russo e Gustavo Clarão, canta: “Eu, travesti. Estou no cruzo da esquina, pra enfrentar a chacina, que assim se faça. Meu Tuiuti, que o Brasil da terra plana tenha consciência humana, Xica vive na fumaça”. A Paraíso do Tuiuti ficou em nono lugar no desfile