A última tentação de Dave Chappelle

A jornalista Ashley Marie Preston, de branco, e a atriz Blossom C. Brown (ao microfone) – ambas mulheres trans – em protesto em frente à sede da Netflix: denúncia de transfobia contra comediante Dave Chappelle (Foto: Rodin Eckenroth / AFP – 20/10/2021)

Funcionários da Netflix e comunidade trans protestam contra especial feito pelo comediante americano, acusado de transfobia, para a rede de streaming

Por Gabriel Trigueiro | ODS 10 • Publicada em 25 de outubro de 2021 - 08:40 • Atualizada em 2 de novembro de 2021 - 09:24

A jornalista Ashley Marie Preston, de branco, e a atriz Blossom C. Brown (ao microfone) – ambas mulheres trans – em protesto em frente à sede da Netflix: denúncia de transfobia contra comediante Dave Chappelle (Foto: Rodin Eckenroth / AFP – 20/10/2021)

O comediante Dave Chappelle começa “Encerramento”, o seu novo especial de stand up para a Netflix, afirmando que o sentimento que tem pela população gay é de inveja. O argumento, repetido à exaustão ao longo do especial, é o de que as vitórias dos negros no campo dos direitos civis até agora foram muito mais limitadas do que as da comunidade LGBTQIA+. E isso se explica, por um lado, porque os Estados Unidos ainda são, do ponto de vista cultural, fundamentalmente uma sociedade escravocrata e, por outro, porque as lideranças da comunidade LGBTQIA+ seriam majoritariamente brancas e, portanto, teriam sempre ascendência sobre qualquer pauta social, cultural ou política negra, na paisagem política norte-americana.

“Encerramento” é o sexto e último especial de stand up de Chappelle para a Netflix. Nos especiais anteriores, o comediante já havia recebido severas críticas públicas por suas piadas dirigidas à comunidade LGBTQIA+, sobretudo à comunidade transgênero. O problema é que a cada especial em que Chappelle era criticado, ele dobrava a aposta no seguinte. Chappelle se notabilizou como um dos maiores comediantes norte-americanos durante os anos em que esteve à frente do seu programa humorístico de esquetes “Chappelle’s Show” (2003-2006), uma produção da Comedy Central, com duas temporadas completas e uma terceira interrompida abruptamente.

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Não é exagero afirmar que o “Chappelle’s Show” foi revolucionário na TV norte-americana: na forma crua, mas extremamente sofisticada e complexa, com a qual abordava as filigranas das relações raciais nos Estados Unidos, mas também na forma: fez o análogo negro, nos EUA, daquilo que décadas antes a trupe do Monty Python havia feito na Inglaterra, com o “Monty Python’s Flying Circus”, na BBC. Além disso, abriu portas e explorou possibilidades estéticas, narrativas e ficcionais para um sem-número de programas feitos por negros: “Key & Peele”, “Loiter Squad” (do Tyler, the Creator e companhia, no Adult Swim) e foi uma forte referência para a talentosíssima Lena Waithe, de “Master of None”, para citar apenas alguns nomes.

O subtexto ao longo dos 28 episódios do “Chappelle’s Show” é o de que o principal problema dos Estados Unidos é o racismo. Ponto. Daí decorre que qualquer outra questão social ou política deveria ser tratada como secundária. Para Chappelle, no fim das contas, sempre foi uma questão de escala e proporção. O problema é que, na ânsia de demonstrar a urgência do seu argumento, muitas vezes caricaturou qualquer outra questão social que não fosse a racial. Na maior parte das vezes ele conseguiu se equilibrar na linha tênue entre o humor cáustico e a reflexão mais profunda de aspectos complexos da sociedade norte-americana, mas em outros abraçou a autoindulgência e caiu na misoginia e homofobia mais grosseiras.

Um momento de gênio no “Chappelle’s Show”, por exemplo, é o esquete Pretty White Girls Sings Dave’s Thoughts (Garotas Brancas Bonitas Cantando os Pensamentos de Dave), no qual o título é a premissa: uma mulher branca, com formação clássica em canto lírico, canta com pompa e sofisticação, como se estivesse em um musical de Rodgers & Hammerstein, as piadas mais ultrajantes e ofensivas escritas por Dave Chapelle. Aqui o ponto é a convicção inabalável, que até hoje o acompanha, de que há um padrão moral dúplice de julgamento na sociedade norte-americana: se você é branco, você pode falar absolutamente qualquer coisa. Se você é negro, o buraco é mais embaixo, bem mais embaixo.

Cartaz em Hollywood anunciando o especial de Dave Chappelle para a Netflix: protestos de funcionários e da comunidade LGBT+ contra transfobia de comediante (Foto: Robyn Beck / AFP - 13/10/2021)
Cartaz em Hollywood anunciando o especial de Dave Chappelle para a Netflix: protestos de funcionários e da comunidade LGBT+ contra transfobia de comediante (Foto: Robyn Beck / AFP – 13/10/2021)

Em “Encerramento”, Chappelle eleva esse argumento à enésima potência. Por exemplo, quando se classifica como um “feminista radical trans-excludente” e explica a definição: “São mulheres que odeiam, não, ou melhor, mulheres que se ofendem com trans que parecem mulheres. Como nós [negros] ao vermos uma ‘blackface'”. E argumenta que Caitlyn Jenner, por exemplo, é tão mulher quanto o Eminem é negro. Além disso, Chappelle recupera a controvérsia recente envolvendo o rapper DaBaby, na qual o músico disparou uma série de comentários homofóbicos em um show e foi cobrado publicamente a respeito. Chappelle, no entanto, relembra um episódio no qual DaBaby se envolveu em uma confusão em um Walmart, e atirou e matou um homem. Pesando as consequências dos dois eventos, Chappelle conclui: “(…) você pode atirar e matar uma pessoa, mas ai de você se magoar uma pessoa gay”.

No final de “Encerramento”, Chappelle lembra de Daphne Dorman: comediante e mulher transgênero que virou sua amiga e chegou mesmo a abrir seu show em São Francisco. Dorman foi sempre uma apoiadora vocal de Chappelle nas inúmeras acusações que o comediante recebeu de transfóbico. Aliás, foi ao começar a apoiá-lo publicamente que Dorman começou a sofrer episódios de assédio e perseguição em suas redes sociais. Pouco tempo depois, ela se suicidou. Chappelle criou um fundo para ajudar a filha de Dorman e sua família fala abertamente sobre a sua percepção de que o comediante é um aliado à causa transgênero.

No seu especial, Chappelle se posiciona contrário, por exemplo, à legislação anti-trans aprovada recentemente na Carolina do Norte. E é bem claro que ele se vê como alguém politicamente simpático à causa. No entanto, ao longo do show se refere à comunidade LGBTQIA+ como “aquela turma do alfabeto”, “confusa” e coisas do tipo. Argumenta que a escritora J.K. Rowling foi cancelada, devido às suas opiniões sobre a comunidade trans. Mas a pergunta que Chappelle não responde é: Como falar no cancelamento de Rowling se ela continua sendo uma das escritoras mais vendidas da história e segue tendo uma base de fãs na casa dos milhões e que se expande a cada ano?

A cruzada de Chappelle contra a tal da “cultura do cancelamento” às vezes soa como um espantalho retórico, como um mero trampolim narrativo, como uma espécie de atalho, para chegar no punch line da piada. Não é que ela não exista e que não tenha efeitos reais e danosos. Mas o problema é que ficar refém disso, como muleta narrativa, é um artifício preguiçoso para alguém que é um dos maiores comediantes de sua geração e para alguém que tem a capacidade de levar ao estado da arte o domínio formal do seu ofício.

Além disso, Chappelle é um intelectual público. Antes de ser comediante, é um sujeito culto e que pensa com rigor e sofisticação. Se você leva isso em consideração, fica difícil comprar a ideia de que ele realmente acredita que não há qualquer ponto de interseção entre as diversas agendas LGBTQIA+ e as diversas agendas da comunidade negra. Não é por acaso que ao longo dos 72 minutos do especial não ocorre qualquer menção a negros e negras transgênero. Houvesse qualquer menção, uma que fosse, desmontaria o argumento central de Chappelle: que opõe binariamente negros e LGBTQIA+, mesmo quando diz que não o faz.

O comediante Dave Chappelle em evento em Las Vegas: especial na Netflix provocou críticas da classe artística, da comunidade trans e de funcionários da empresa (Foto: Stacy Revere / Getty Images / AFP -10/07/2021)

Se é uma verdade pouco confortável o fato de que o bullying sofrido injustificadamente pela comediante transgênero Daphne Dorman foi cometido em larga escala por ativistas igualmente transgênero, em redes sociais como o Twitter, também é verdade que vários estudos demonstram a relação direta entre as muitas violências cometidas contra a comunidade trans e os estereótipos ofensivos propagados por Chappelle nos seus especiais de comédia. A propósito, Chappelle deveria saber que as mulheres transgênero negras são desproporcionalmente o grupo mais suscetível e vulnerável a toda sorte de violências físicas e psicológicas dentro da própria comunidade trans.

Jaclyn Moor, que é trans e uma das showrunners de “Dear White People”, se manifestou publicamente crítica a Chappelle e chegou mesmo a pedir demissão da Netflix. A verdade é que “Encerramento” veio como uma granada de fragmentação dentro da Netflix. Enquanto escrevo, ocorre uma manifestação de parte dos funcionários que é contrária ao discurso de Chappelle. Por outro lado, Ted Sarandos, CEO da companhia, já se mostrou publicamente a favor do comediante. No momento, essa é a correlação de forças.

A resposta mais certeira, até agora, recebida por Chappelle, foi uma coluna publicada no Guardian, escrita por Dahlia Belle, uma comediante e escritora negra e transgênero. Segundo ela, o maior problema de “Encerramento” não é o fato de ter piadas sobre trans, mas sim o fato de ter piadas ruins sobre trans. Ou como pontuou Jeffrey Jay, igualmente comediante e transgênero, no Twitter: “Cada vez que ouço que Dave Chappelle tem um novo especial, fico triste. Não porque eu sei que as piadas trans estão vindo, mas porque eu sei que as mesmas piadas trans estão vindo”.

No episódio de “My Next Guest Needs No Introduction”, o programa de entrevistas de David Letterman, também uma produção original da Netflix, Chappelle contou para Letterman o real motivo pelo qual abandonou abruptamente o “Chappelle’s Show”, no início da terceira temporada, recusando um contrato de 50 milhões de dólares. Segundo ele, durante a filmagem de um esquete no qual ele mesmo atuava de blackface, porque a ideia desse esquete era satirizar estereótipos raciais, havia um homem branco na plateia que riu mais alto e por mais tempo do que o apropriado, sugerindo que ele não estava rindo da sátira, mas sim do próprio estereótipo. Esse ruído de comunicação, para usar um eufemismo, foi incômodo o suficiente para que Chappelle desistisse do seu próprio programa. Me parece pouco razoável que alguém que já teve a sensibilidade e o cuidado, e mesmo a integridade artística, de recusar um contrato de 50 milhões de dólares, porque poderia estar alimentando involuntariamente estereótipos negativos sobre uma determinada parcela da população, não consiga enxergar que talvez tenha infelizmente se colocado novamente em situação análoga ao ocorrido há quase vinte anos.

Gabriel Trigueiro

Doutor em História Comparada pela UFRJ e especialista em teoria política e crítica cultural. Escreve sobre política brasileira, política internacional e cultura.

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Um comentário em “A última tentação de Dave Chappelle

  1. Luis Henrique disse:

    Dave Chapelle não condena a população trans em si, ele condena as lideranças dos movimentos lgbts, que parecem querer derrotar o ódio contra eles com mais ódio, e mais ódio só gera mais ódio. Assim nasceram os trumps e bolsonaros, e vão continuar nascendo enquanto as pessoas resolverem educar os outros através de ameaças via internet.

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