Nego viaja

As experiências, dicas e apertos dos viajantes negros

Por Gilberto Porcidonio | ODS 1 • Publicada em 1 de fevereiro de 2018 - 09:00 • Atualizada em 1 de fevereiro de 2018 - 21:16

Ana Cristina, no vilarejo de Hallstatt, na Áustria: saída antecipada de Praga, por constrangimento. Foto: Acervo Pessoal
Ana Cristina, no vilarejo de Hallstatt, na Áustria: saída antecipada de Praga, por constrangimento. Foto: Acervo Pessoal

Convenhamos que viajar virou uma espécie de religião. Afinal, os benefícios que elas nos trazem são muito bem pregados. Isso inclui explorar, conhecer outras culturas ao sair de sua zona de conforto e, é claro, registrar muito nas redes. Mas será que poder viajar livremente sem sofrer qualquer tipo de abordagem negativa é mesmo para todos? A resposta é não. São muitos os relatos de pessoas de pele preta que viajaram para se divertir mas acabaram mergulhadas em ambientes hostis. São tantos casos de racismo que eles inspiraram plataformas de viagens e hospedagens especificamente para esse público, para garantir que o sonho de conhecer o mundo não acabe se transformando em um pesadelo.

[g1_quote author_name=”Antonio Pita” author_description=”Sócio do Diáspora.black” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

A polícia nos parava de forma rotineira, principalmente em Veneza. E o atendimento nos restaurantes, especialmente em Roma, era algo desrespeitoso como nunca havia experimentado antes

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Uma delas é a Diáspora.black, que nasceu formalmente em 2016, como fruto das experiências que os sócios Carlos Humberto da Silva Filho, André Ribeiro e Antonio Pita tiveram em suas viagens e também de situações de racismo e  constrangimento que viveram no exterior.  A proposta do Diáspora.black é aproximar viajantes e anfitriões para uma troca de espaços e experiências com foco na cultura negra. Como os sócios definem, é uma “rede ancestral de encontros e acolhimento”. “Não toleramos qualquer tipo de discriminação racial, de gênero, orientação sexual, nacionalidade, idade e também não fazemos distinção de qualquer tipo em nossos cadastros”, esclarecem no site.

Antonio conta que a experiência mais constrangedora que viveu foi em uma viagem à Itália. “Estava com um amigo camaronês, éramos ambos estudantes universitários, e fomos alvo de discriminação em diversos espaços: casas de show, restaurantes, hotéis e na rua. A polícia nos parava de forma rotineira, principalmente em Veneza”, conta. “E o atendimento nos restaurantes, especialmente em Roma, era algo desrespeitoso como nunca havia experimentado antes. São situações que podem abalar a autoestima, a confiança e todo o clima da viagem”.

[g1_quote author_name=”Ana Cristina Monteiro” author_description=”Chefe de departamento no INPI” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Eu percebia que era curiosidade genuína, porém, comecei a me sentir uma atração circense e me mandei de Praga

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Em compensação, na África do Sul ele viveu uma “experiência transformadora”.  “Pude conhecer de perto a história do apartheid, reconhecendo as semelhanças com nossa realidade local. O país tem muito a ensinar ao mundo sobre a construção e os efeitos do racismo. No meu caso, foi importante sobretudo conhecer mais lideranças de resistência e, especialmente, a altivez da população e o caráter cosmopolita de Joanesburgo. Também foi impactante uma passagem por Lagos, na Nigéria, onde éramos vistos como “ocidentais”, mas, quando contávamos nossa origem e falávamos do propósito da viagem, nos saudavam por “fazer o caminho de volta”.

Chefe da divisão de exame técnico de marcas do INPI, a viajada Ana Cristina Monteiro – que conhece mais de 30 países – se sentiu tão mal em uma viagem a Praga que antecipou em dois dias sua saída da bela capital da República Checa. O ano era 1998. “Não fazia nem 10 anos que tinha caído a Cortina de Ferro. Todo mundo me olhava na rua. Um grupo de crianças chegou a me cercar e perguntar, de olhos arregalados, de onde eu era. E como o futebol é uma referência em qualquer buraco deste vasto mundo, bastava eu dizer que era do Brasil para começar o ‘Ronaldo! Romário! Rivaldo!’. Eu percebia que era curiosidade genuína, porém, comecei a me sentir uma atração circense e me mandei de lá”, conta.

Sabrina Fidalgo, em Paris: medo de sofrer preconceito não paralisa a atriz e cineasta. Foto: Acervo Pessoal

Mas não só lá fora que aparece o preconceito, muitas vezes disfarçado de curiosidade. O vloguer Diego Queiroz, que não perde uma oportunidade de encher a mala e desbravar o mundo além da Baixada Fluminense, fez um vídeo para ironizar os amigos que vivem questionando: “Como é que você viaja tanto? Tá rico?”. A resposta é: “Eu trabalho. Acordo cedo, pego trem, metrô e ônibus lotados, todos os dias, e passo de 8 a 12 horas dentro de um prédio”. Para os invejosos de plantão, ao invés de “beijinho no ombro”, ele dá um conselho: “Pare de ficar olhando a vida das pessoas e instale aplicativos de promoções de passagens aéreas”.  O vídeo rapidamente viralizou.

Além do site Diáspora.black, a agência Travel Noire também foi criada, em 2013, para oferecer opções aos viajantes negros, longe das abordagens racistas e discriminatórias, com enfoques mais plurais dos pontos de vista cultural e étnico. A plataforma também indica os chamados black-owned businesses (lugares tocados por afroempreendedores) de cada região. A Nomadness Travel Tribe trabalha mais com o chamado turismo de imersão. Como eles dizem em sua própria descrição, a ideia é que o interessado conheça lugares que vão desde um orfanato no Cambodja ao pub que serve a melhor cerveja da Alemanha, sem hierarquia de valores.  A idealizadora do projeto, Evita Robinson,  foi convidada para dar uma palestra, no TED, sobre o Black Travel Movement.

Na Europa, África ou Ásia, a cineasta, atriz e globetrotter Sabrina Fidalgo já perdeu as contas dos lugares que conheceu. Ela diz saber que nos arredores de Berlim e nas cidades do leste da Alemanha e da Áustria existem as chamadas “Don’t Go Areas”, lugares onde manifestos de neonazistas se fazem mais presentes. Porém, essa sensação de que pode virar persona non grata em algum lugar só porque é negra não a paralisa. “Tento não ficar na paranoia e não me deixo intimidar nas minhas escolhas. Na Europa, me senti muito tranquila nesse sentido na Inglaterra, França, Suécia, Espanha, Itália, Dinamarca… E por motivos óbvios na África, onde estive no Marrocos e em Gana. Também fui muito feliz no Sudeste da Ásia, onde todo mundo me parava para dizer que meu sorriso era incrível. Acredito muito no poder da energia que você emana, e viagens são momentos mágicos, onde eventos e encontros surpreendentes, que fogem do lugar comum, acontecem. Sempre acredito no melhor das pessoas”.

Pois é, negro viaja. E isso não é viagem nossa.

Gilberto Porcidonio

É repórter do jornal "O Globo" e sociólogo em formação pela PUC-Rio. Especializa-se em cultura e questões raciais. Como poeta, mantém o alter-ego Frederico Latrão e, como escritor, é um dos autores da coletânea "Larica Carioca", sobre os quitutes dos bares do Rio de Janeiro, além de manter o blog 'O Títere'.

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3 comentários “Nego viaja

  1. Atiene Perino disse:

    Que hipocrisia desse Porcidonio. Tipica atitude do carioca malandro que quer cair nas graças de uma parcela da população… Não existe negro brasileiro. Pessoal esse sujeito é jornalista… Existe diferença entre jornalista e politico brasileiro? Respondo – Não. Ambos são malandros. O Brasil é uma amalgama de raças… Os que se propalam negros não o são… Mentem tal e qual esse jornalista.

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