Sem direitos: família não tem computador nem celular conectado

Lan house entrega pesquisa pronta às crianças. Lares desconectados no país somam 25%

Por Adriana Barsotti | ODS 1ODS 8 • Publicada em 25 de março de 2019 - 08:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 18:58

Raimundo e Maria, em frente à casa onde moram. Eles fazem parte dos 25% desconectados. Foto: Yuri Fernandes

Raimundo e Maria, em frente à casa onde moram. Eles fazem parte dos 25% desconectados. Foto: Yuri Fernandes

Lan house entrega pesquisa pronta às crianças. Lares desconectados no país somam 25%

Por Adriana Barsotti | ODS 1ODS 8 • Publicada em 25 de março de 2019 - 08:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 18:58

Quando o assunto é internet, os brasileiros estão sempre entre os primeiros colocados. Ocupamos o terceiro lugar no uso diário da rede mundial de computadores, com 9 h e 14 minutos gastos por dia, só perdendo para a Tailândia e as Filipinas. A título de comparação, os americanos ficam quase três horas a menos que nós (6h e 30 min).  Em redes sociais, saltamos para o segundo lugar, atrás das Filipinas, com um consumo diário de 3h 39 min.  No planeta, os internautas passaram um bilhão de anos conectados em 2018.

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Na escola só havia dois computadores, e só os diretores podiam usar. Quando a gente precisava. tinha que ir à lan house, que cobrava pela pesquisa e R$ 2 por cada folha impressa

Jéssica de Souza

O problema é que essas efusivas estatísticas são referentes aos incluídos digitais. No Brasil, ainda temos um quarto dos domicílios do país excluídos da rede mundial de computadores (25,2%). Para o IBGE, é importante ainda que o acesso à rede seja via computador. O instituto considera como positivo o crescimento do uso dos dispositivos móveis, mas ele estaria criando outra desigualdade, uma vez que tais aparelhos não teriam a mesma capacidade produtiva. O acesso por computador, considerado com maior potencial, contemplava apenas 15,3% dos lares mais pobres em 2017.

A região mais excluída da rede mundial de computadores é a Nordeste, onde ainda há 37,4% dos lares sem internet. É o caso de Raimundo Nonato Lopes de Souza, de 49 anos e Maria da Conceição Souza, de 43 anos, que vivem com seus seis filhos, um genro e um neto às margens da rodovia BR-135, no Maranhão, a 210 km de São Luís. Eles têm duas geladeiras e duas TVs, mas só cada par dos eletrodomésticos funcionam: os outros estão lá até que suas peças sejam vendidas e possam gerar alguma renda extra. Fogão não têm: só um fogareiro a carvão.

Computador é um sonho de consumo muito distante. “Não somos assalariados nem aposentados”, explica Raimundo. “Quando tem trabalho, a gente capina, quebra coco, faz de tudo”, complementa Maria. Os bicos rendem ao casal de R$ 15 a R$ 20 por dia. Os Souza simbolizam a categoria sem acesso à comunicação, leia-se internet, pela classificação do IBGE. Eles se somam aos outros sem direitos da nossa série de reportagens: sem direito à moradia adequada, à proteção social, à educação, ao saneamento e à vida

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Nenhum dos filhos teve a oportunidade até hoje de fazer pesquisas escolares no computador. Na escola Rosimeire Torres Nunes, que frequentaram, em Alto Alegre do Maranhão, só havia dois computadores e eles eram de uso exclusivo da direção, explica Jéssica de Souza, de 24 anos. Quando precisavam, tinham que ir à lan house, que cobrava pela pesquisa e R$ 2 por cada folha impressa. Eram os próprios funcionários que faziam a busca do tema e selecionavam os resultados. Jéssica é a única da família que conseguiu completar o Ensino Fundamental. É também a única a possuir um celular, presente de um ex-namorado. “Mas está há mais de um mês sem crédito”, revela. Duas abandonaram a escola quando engravidaram e três ainda estão na escola. “Computador faz falta para as crianças. Agora nem temos como pagar a lan house”, lamenta Raimundo.

As duas TVs na casa dos Souza: apenas a menor funciona. Foto Yuri Fernandes

No país, há mais lares com internet do que com saneamento (a divergência nos números de acesso à internet pela PNAD reside no fato de a pesquisa contar o número de celulares, não de computadores). Enquanto 25,2% estão fora da rede mundial de computadores, 37,6% não têm água, esgoto nem coleta de lixo. “Essa discrepância reflete a ausência do Estado e o crescimento do mercado, com a oferta de planos de dados cada vez mais baratos pelas empresas de telefonia”, observa o pesquisador de cibercultura André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e doutor em Sociologia pela Université Paris V. “Também é reflexo do boom das redes sociais. Há muitos planos com acesso grátis ao WhatsApp e Facebook”, completa Lemos.

A família de Raimundo e Maria Souza: casa no interior do Maranhão não tem internet. Foto: Yuri Fernandes

O pesquisador, entretanto, aponta que tal expansão não significa acesso a conteúdo de qualidade ou diversificado, como era a promessa da internet em sua origem. “O problema é que as redes sociais não garantem necessariamente acesso à informação. Elas acabam reforçando as bolhas devido à ação dos algoritmos: as pessoas só acessam o que gente como elas pensam”, critica, referindo-se ao fato de o conteúdo ser mostrado ou ocultado dos usuários de acordo com suas afinidades e comportamentos prévios nas redes. “A maioria não está acessando livros ou bancos de dados”, afirma Lemos, autor dos livros “Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea”, “A comunicação das coisas” e “O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária”, este último em co-autoria com Pierre Lévy. “A internet continua sendo um bem universal importante, mas mudou sua configuração em relação aos anos 1990, depois dos algoritmos das mídias sociais, que têm causado empobrecimento cognitivo na rede”, lamenta.

Enquanto Salvador se transformou em hub de tecnologia, aponta Lemos, a capital baiana viu aumentar seus índices de violência nos últimos 20 anos e têm os piores indicadores no Ensino Médio no país. “É um espelho da sociedade”, sustenta. A família de Raimundo e Maria se manteve à margem da inclusão digital, mas também é vítima da  pobreza educacional a que se refere o pesquisador. Uma das filhas, Gecicleide Souza, de 16 anos, está grávida. Ela estudou até o sétimo ano. “A escola era ruim demais”, diz a adolescente. A mãe reforça: “Você entra burro e sai jumento”. “Há dias em que não há merenda na escola nem almoço em casa”, lamenta Maria. Eles tentam comprar fiado, mas os estabelecimentos só querem vender para os aposentados, que têm uma renda fixa, ela observa.

Raimundo com uma das filhas, Jéssica: ela ganhou o celular de um ex-namorado, mas não tem dinheiro para inserir créditos. Foto: Yuri Fernandes

Além dos bicos, a família sobrevive com R$ 170 mensais do Bolsa Família. O pai explica que havia mais trabalho na região, quando ali funcionava uma usina que fabricava sabão e óleo de babaçu. “Mas foi fechada pela fiscalização do Ministério do Trabalho”, ele conta. Pergunto se foi por suspeita de trabalho escravo e ele acena que sim com a cabeça. Quando chegamos à casa da família Souza, estavam todos sentados, na varanda. No quintal, há um banheiro sem teto. Eles não têm água encanada nem coleta de lixo, como Dona Júlia Marques, nossa personagem sem saneamento. Também há duas filhas que não chegaram ao último ano do Ensino Fundamental. Além de Gecicleide, a mais velha, Sebastiana de Souza, de 29 anos, que vive com o marido, Adailton da Silva, também de 29, na casa dos pais, não conseguiu chegar ao nono ano. Ou seja, os Souza estão entre as 15,8% de famílias brasileiras privadas de ao menos três direitos: à educação, à comunicação e ao saneamento.

Nos fundos da casa, há bananeiras e um mamoeiro, o que garante eventualmente pelo menos frutas no cardápio familiar. Quando nos preparávamos para as gravações em vídeo, vimos que há uma outra fonte de renda. Jéssica nos chamou reservadamente e me perguntou se eu e Yuri, o cinegrafista e editor de imagens, não queríamos comprar batons que a irmã de 16 anos estava vendendo. As duas crianças menores abrem uma caixa repleta deles, com várias cores de rosa, vermelho e lilás. Compramos três para dar de presente. Não dei o meu. Ficou como recordação daquela família que nos abriu as portas de sua casa e nos contou como vivia, sem rancor ou tristeza, apesar de estatisticamente representar a porção mais desfavorecida dos brasileiros.

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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