(Por Fernanda Magalhães*) – Em pé, sob um sol inclemente, a agente cultural Aline Mendes despeja tantas ideias, pensamentos e projetos ao mesmo tempo que é difícil acompanhar. Algumas nem chegam a ver a luz do dia, ou melhor, nem saem da “gaveta das boas ideias”, nome dado por ela às anotações que faz quando é atingida por uma avalanche de planos para o Morro da Providência, onde vive. Outras, no entanto, já ganharam até prêmio como é o caso do projeto Providência Sustentável, com oficinas de sustentabilidade para crianças. Aline foi uma das 34 premiadas com R$ 50.000,00, entre 204 inscritos, em 2013, pelo Prêmio Porto Maravilha Cultural.
[g1_quote author_name=”Aline Mendes” author_description=”Agente Cultural” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As pessoas vivem encarceradas na favela. Não conhecem outra coisa. Ficam do trabalho para casa. Eu tive o privilégio de a minha educação, mesmo sendo aqui na favela, ter sido um pouquinho diferenciada, com LPs e livros. Meu pai trabalhava na Zona Sul e trazia muita sobra de madame
[/g1_quote]“Eu tinha dois dias para escrever, fazer o orçamento e entregar. Não sabia bulhufas. Fui ao Instituto Pretos Novos (IPN) pedir uma orientação. Nem entendi quando venci. Acho que foi o tema. A conscientização da sustentabilidade, a produção de lixo na favela e as ações serem todas baseadas em oficinas de reciclagem de resíduos gerados na própria comunidade. Antes, eu não gostava de reconhecer nada que era a meu respeito, mas agora, beijinho no ombro. Eu faço mesmo”, orgulha-se Aline, que teve ajuda de duas amigas da região portuária para formalizar seu projeto.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosQuando saiu do emprego em um cartório na Zona Sul, Aline pôde se dedicar ao que faz naturalmente: observar a favela e pensar em soluções para melhorar o local. A ideia do Providência Sustentável nasceu em um momento em que a filha Marília, de 12 anos, brincando no topo do morro, notou o descuido com os canteiros do projeto Favela Bairro. A agente cultural quis abordar o problema do ponto de vista da sustentabilidade, mas pensou também em dar emprego para os moradores da comunidade. A favela, segundo Aline, sofreu mudanças muito “radicais” com o Porto Maravilha, projeto da prefeitura iniciado em 2011.
“Os impactos cultural, ambiental e econômico na região foram muitos. Aqui é pura letra do Paralamas do Sucesso: ‘A novidade era o máximo, o paradoxo estendido na areia, metade busto de uma deusa, outra, rabo de baleia’. São famílias sendo ameaçadas, compradas, perdendo suas casas. Quem está aqui no centro da cidade, não quer sair para um conjunto habitacional não sei onde. O trator financeiro, que move os grandes bolsos do nosso país, sai atropelando tudo e todos”, reclama.
[g1_quote author_name=”Aline Mendes” author_description=”Ativista social” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu sou gente que faz. Fica todo mundo repetindo ‘precisamos de fomento’. Acho que precisamos é de um amigo com sobra de tinta, pincel, um voluntário
[/g1_quote]Com o fim dos recursos injetados pelo prêmio, em 2014, e feita a prestação de contas, no ano seguinte, Aline toca seu projeto de forma independente. Parte do estímulo vem do trabalho do fotógrafo francês J.R, que, em 2008, esteve na Providência ilustrando com fotos gigantes fachadas de casas da comunidade. Ele elaborou o projeto Women Are Heroes, do qual Aline e sua mãe também foram personagens. A outra parcela de inspiração vem dos anos em que ajudou o pai, pintor, na construção da casa onde vive. Com essa bagagem, Aline passou a desenvolver ações voltadas para colorir espaços da favela. Recentemente, conseguiu com estudantes holandeses, que estiveram no morro para um workshop, a doação de tintas e ferramentas, como baldes, bandejas, pincéis e rolos.
“Normalmente, quando as pessoas chegam aqui eu já estou fazendo. Eu não fico naquela questão de tire seu projeto do papel. No meu caso é: coloque seu projeto no papel. Eu sou gente que faz. A parceria internacional é muito mais confiável do que a nossa, não menosprezando as empresas. Fica todo mundo repetindo ‘precisamos de fomento’. E eu acho que precisamos é de um amigo com sobra de tinta, pincel, um voluntário”, diz.
Hábil na negociação, Aline sabe se relacionar com os diversos atores que agem na comunidade. Para realizar qualquer evento, precisa de autorização por parte de grupos atuantes na região, sejam elas oficiais ou não oficiais. Já para intervir em áreas abandonadas, precisa da ajuda dos garis com quem desenvolveu relação de amizade e a quem já apresentou projetos de limpeza da comunidade, causando ciúmes na vizinhança.
“Eu não levo problema. Não fico perturbando o tempo todo. Levo algumas soluções. Você tem que saber se colocar. Não cheguei pedindo aos garis para limpar. Perguntei o que eu poderia fazer para melhorar o trabalho deles. Porque são eles que carregam nosso lixo. Eles se furam com caco de vidro, sobem e descem escadaria com carrinho. É difícil.
Bem distante do ideal de morro cantado por Cartola, onde ninguém chora e sente dissabor, o cotidiano da Providência é descrito por Aline como “cárcere a céu aberto”. Só há tempo para trabalhar, a violência vitima moradores, e o lazer é limitado ao baile funk. No entanto, até Aline, que sabe da importância de conhecer outros lugares, admite que também se viu limitada à Providência quando passou a ser agente de cultura em período integral. Não por falta de tempo. Mas pelo forte desejo de transformar sua realidade.
“As pessoas vivem encarceradas na favela. Não conhecem outra coisa. Ficam do trabalho para casa. Eu tive o privilégio de a minha educação, mesmo sendo aqui na favela, ter sido um pouquinho diferenciada, com LPs e livros. Meu pai trabalhava na Zona Sul e trazia muita sobra de madame. Mas eu acabei também me trancafiando na Providência. De tanto querer fazer as coisas aqui, de certa forma fui me deixando ser dominada por isso”, admite ela que, às vezes, usa dinheiro do próprio bolso, sob os protestos da mãe, para realizar seus projetos.
Além de tocar o Providência Sustentável, a incansável Aline se envolve em muitas outras atividades: estuda gestão ambiental na Universidade Estácio de Sá, “para não papar mosca com empresa”; faz curso de construção civil, para terminar a reforma da casa onde mora; também frequenta aulas no Sebrae, para desenvolver um centro cultural em um espaço da sua casa; participa de encontros de empreendedorismo no Laboratório Rua City Lab, onde elabora oficinas com madeira e papel; faz parte do programa Vizinhos do Mar (Museu de Arte do Rio), que busca integrar a região portuária ao museu; tem uma parceria remunerada com a Favela Painting, que a levou até Curaçao, no Caribe, para planejar o retorno da fundação holandesa ao Rio, dessa vez à Providência; e começou a fazer um levantamento sobre a favela, por duvidar da história que é contada sobre a comunidade.
“Eu gosto de brigar, porque cada vez que eu brigo desperta em mim a vontade de provar a tese da pessoa. Você vai pesquisando um pouquinho. Não é muito difícil, não. E eu fiquei me questionando se a Providência é oriunda mesmo de Canudos, porque tudo que tem aqui me diz o contrário. É mais agradável ouvir isso do que ela ter sido formada pelas pessoas expulsas dos cortiços. Chega de ouvir o que é agradável. Mas não vou bater boca com historiador. Os livros me ajudaram muito, mas tem coisa que não está nos livros”.
- Fernanda Magalhães é carioca, jornalista, formada pela Escola de Comunicação da UFRJ e voluntária no Atados Rio. Ama moda, jornalismo cultural e psicanálise, mas quer mesmo é ser relevante
Como fazemos para entrar em contato com a agente Aline e poder ajudá-la no que ela precisar?