Você explica uma vez, fala de novo, repete o argumento, e, mesmo assim, não consegue se fazer entender. Pode até parecer uma situação absolutamente normal, numa conversa em grupo. Mas alguma coisa está fora da ordem quando vira uma cena cotidiana no ambiente de trabalho, em que os interlocutores, quase todos homens, não parecem dar a mínima para o que você está dizendo. A física Karín Menendez Delmestre perdeu as contas de quantas vezes passou pela mesma situação durante o doutorado em Astronomia, na Califórnia, Estados Unidos. “Eu falava e sentia que não tinham entendido. Precisava repetir ou falar mais alto, insistir nas minhas ideias, para que meus comentários entrassem na conversa. Era tudo muito sutil. E olha que meus colegas eram legais”.
O mundo acadêmico está recheado de histórias como a da cientista porto-riquenha, que hoje é professora do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As situações de machismo e preconceito enfrentadas por pesquisadoras do mundo inteiro são tão frequentes que, em 2014, foi criada a Rede Francófona de Mulheres Responsáveis pelo Ensino Superior (Resuff, na sigla em francês), apoiada pela Agência Universitária de Francofonia (AUF), que também atua no Brasil.
No país, 18 universidades integram a AUF. Entre elas, três do Rio: UFRJ, Uerj e UFF. Um dos objetivos da agência é aumentar a participação de representantes do sexo feminino em cargos de liderança no meio acadêmico. Hoje, o número é muito baixo. Na Europa, apenas 9% dos cargos de direção de pesquisas são ocupados por mulheres e só 11% ocupam postos de alta responsabilidade acadêmica. Os dados foram apresentados por Leila Saadé, presidente da Resuff, em um debate na Universidade de São Paulo (USP), no ano passado. “Não há nenhum argumento para dificultar a entrada das mulheres nas esferas de direção das universidades” diz Patrick Chardenet, representante da AUF na América Latina.
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Veja o que já enviamosA situação é ainda mais delicada nas chamadas ciências de ponta. De acordo com dados da União Astronômica Internacional, a atuação feminina nas ciências físicas, por exemplo, não passa de 20%, em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Japão. No Brasil, levantamento da Sociedade Astronômica Brasileira, de 2015, apontava que, entre os astrônomos cursando mestrado, apenas 38% eram mulheres. Entre os pesquisadores com doutorado, o percentual era ainda menor: apenas 22% do total.
[g1_quote author_name=”Karín Delmestre” author_description=”Cientista” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]“Várias das minhas amigas pesquisadoras acabam optando por não ter filhos”
[/g1_quote]O que os números mostram é que, quanto mais a mulher avança na carreira, menos chances ela tem de permanecer. É o que a pesquisadora Karín Delmestre chama de “vazamento da tubulação”, fenômeno que vem sendo estudado em todo o mundo e que tem sido tema de palestras da cientista, em seminários e congressos. As mulheres ingressam na faculdade, mas à medida em que se especializam vão se retirando – ou sendo afastadas – do mundo acadêmico. Para permanecer, muitas optam por não ter filhos. O momento da maternidade é o mais temido. “Várias das minhas amigas pesquisadoras falam desse receio e acabam optando por não ter filhos”, revela a biomédica Bruna Romana de Souza, que estuda os processos de cicatrização da pele no Laboratório de Reparo Tecidual, da Uerj.
Karín Delmestre acaba de voltar da licença-maternidade. “Achei que, durante esse período, ia ter tempo de fazer pesquisa, escrever artigo… Não foi possível”. Segundo ela, para evitar a evasão das mulheres do meio acadêmico seria preciso adotar medidas como a implantação de creches nas instituições, oferecer serviços de apoio às mães em eventos, como feiras e congressos internacionais.
[g1_quote author_name=”Helena Nader” author_description=”Presidente da SBPC” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Não pode haver duas pessoas com a mesma qualificação recebendo salários diferentes
[/g1_quote]Apesar de os desafios ainda serem imensos, Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), afirma que o cenário já foi pior. Segundo ela, a Academia Brasileira de Ciências é a que conta com o maior número de representantes do sexo feminino, em comparação com instituições semelhantes no resto do mundo. A biomédica, no entanto, admite que a remuneração das mulheres ainda é menor que a dos homens. “Não pode haver duas pessoas com a mesma qualificação recebendo salários diferentes”, defende.
Outra questão é a da maior visibilidade para a ciência, de uma forma geral, e para as mulheres cientistas, em particular. De acordo com Helena, a ciência tem pouco espaço nos grandes veículos de comunicação e, “nas raras vezes em que o tema aparece, os homens é que costumam ser citados”. Para dar visibilidade à produção científica feminina, a SBPC lançou, em julho de 2016, o site Ciência & Mulher.
Hoje, uma das poucas premiações voltadas para mulheres cientistas no Brasil é promovida pela Fundação L’Oréal, em parceria com a Unesco e com a Academia Brasileira de Ciências. As cientistas Bruna Romana e Karín Delmestre foram vencedoras em edições diferentes. “O mundo precisa de ciência e a ciência precisa de mulheres. Tornar conhecido e valorizar o trabalho dessas mulheres que dedicam as suas vidas à ciência não apenas beneficiará a pesquisa, mas também contribuirá para uma sociedade mais justa e democrática”, diz Patrick Sabatier, diretor de Comunicação e Relações Institucionais da L’Oréal Brasil.
Pesquisa feita na Europa pela fundação ligada à empresa de cosméticos revela uma visão distorcida do papel da mulher na ciência: 67% dos entrevistados acreditam que as mulheres não têm, entre outras qualidades, espírito prático nem perseverança. Como se vê, não resta outra saída se não perseverar, com rigor científico, contra o preconceito.