Ao longo de seis anos, José Alsanne costumava passar seis horas de seu dia dentro de um transporte público. Morador do Ponto Chic, em Nova Iguaçu, ele estudava em um colégio em São Cristóvão e pegava três ônibus por dia. A saga continuou quando o jovem foi fazer faculdade na PUC (Pontifícia Universidade Católica), que ficava ainda mais longe, na Gávea. O trajeto incluía um considerável trecho a pé. Além de um certo trauma (“Até hoje, quando vou para lugares distantes, prefiro pegar trem ou metrô”), a experiência serviu como inspiração para uma websérie de seis episódios, com personagens que encontrou nas redes sociais. O projeto acabou dando origem a um curta-metragem, Trajetos — O filme.
Uma das personagens de Trajetos, a estudante de Licenciatura em Teatro Adrielle Vieira, 22 anos, moradora de Austin, Nova Iguaçu, conta que o filme fez com que sua mãe e outros parentes passassem a enxergar as viagens em transporte público com outros olhos. “Eles viram que, apesar do cansaço, tem alguma coisa boa”, diz. A estudante considera o tempo que passa descolocando-se de um canto a outro do Rio importante, inclusive, para seu trabalho como atriz. “A viagem me ajuda muito na construção de personagens”, garante.
Um dos trajetos mais frequentes é o que ela faz de casa até a faculdade, na UNI-Rio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), na Urca. “Morar longe muda muito a nossa visão. A gente sai do automático. A galera que vive ao lado (da faculdade) não percebe muito o que está à sua volta”, acredita.
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Veja o que já enviamosÉ muito difícil ver meu o bairro nas telas como algo positivo, sabe? Sempre que retratam o lugar onde moro, mostram a violência, as partes negativas. Ver imagens da rua por onde passo todos os dias, do ônibus que eu pego, das casas, foi incrível. Tenho muito orgulho de ser da Baixada
[/g1_quote]José Alsanne, jornalista e cineasta, de 28 anos, planeja exibir seu curta-documentário em cineclubes e festivais. A largada já foi dada em uma sessão na Praça dos Direitos Humanos, no centro de Nova Iguaçu, no dia 12 de agosto, promovida pelo Cineclube Buraco do Getúlio, “O que me impressionou foi que era uma praça, um lugar onde as pessoas ficam espalhadas, bebendo e conversando, mas elas foram se aproximando para assistir ao filme”, comemora.
A série e o curta foram realizados pelo Canal Plá, projeto criado por Alsanne em 2015 para registrar o cotidiano na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “Eu queria ser youtuber, mas não rolou, porque comecei a esbarrar em assuntos profundos, como feminismo, questões sociais. Não me sentia confortável abordando esses temas como youtuber. Acabei criando trabalhos curtos em formato de documentário clássico. As pessoas começaram a exibir esses minidocs em escolas e cineclubes”, lembra.
Um ano e meio depois, veio a ideia da websérie. “Eu já tinha essa vontade de registrar em vídeo as viagens das pessoas dentro dos ônibus. Primeiro, queria entrevistar os passageiros, simplesmente. Mas resolvemos discutir a questão dos transportes públicos, da mobilidade urbana, e fomos pesquisar sobre o assunto. Quando você fala sobre mobilidade, não é um simples deslocar-se. É fazer com que as pessoas cumpram suas atividades: trabalhar, estudar, namorar, se divertir. Queríamos ir além de mostrar o que todo mundo já sabe: que ônibus demora, que é precário”, explica.
[g1_quote author_name=”José Alsanne” author_description=”Jornalista e cineasta” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Na Zona Sul, os passageiros ficavam muito incomodados. No subúrbio, foi totalmente diferente. Todos querem contar suas histórias
[/g1_quote]A câmera passeia por cinco cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, percorrendo os caminhos de quatro linhas de ônibus, uma de trem e uma de barca, além de um trajeto feito de bicicleta. São histórias como a dos jovens que começaram a namorar depois de flertar durante um tempo no coletivo que pegavam diariamente. Ou das moças que aproveitam o tempo no transporte público para escrever poemas. Ou, ainda, da ex-obesa que passava por dificuldades dentro do ônibus. “As pessoas, mesmo com esse caos, criam laços com a linha — se não com o percurso, com os outros passageiros. Existem muitas contradições. Tem uma personagem que diz: ‘Adoro ônibus cheio, porque é combustível para o meu trabalho.’ A gente até pensou, no começo, em chamar uma especialista. Mas virou um registro mais afetivo das pessoas e das histórias que elas carregam”, comenta Alsanne.
Os personagens moram em bairros como Penha Circular, na Zona Norte, e nos municípios de Caxias, Nova Iguaçu, Niterói e Mesquita. Antes de filmar nessas regiões, a equipe fez testes na Zona Sul — e sentiu uma grande diferença na receptividade. “Os passageiros ficavam muito incomodados, e a gente pensava: ‘Caramba, como vou filmar isso?’. No subúrbio foi totalmente diferente. Todos querem contar suas histórias. As pessoas sentem tanta falta de registros do que acontece por lá e pela Baixada que pareciam ensaiadas”, surpreende-se.
[g1_quote author_name=”José Alsanne” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É uma distância muito cruel. A mídia possui um poder, mas as pessoas do subúrbio não o têm à disposição
[/g1_quote]Como outros personagens, Laís Dantas, moradora de Chácara Arcampo, em Duque de Caxias, tem uma relação especial com o ônibus que costuma tomar. “Nem sempre, porque a gente está cansado, a viagem cansa. Tento focar no lado positivo, nas histórias que cada transporte carrega. Penso: ‘Estou indo em busca de um sonho, enquanto outros 50 passageiros vão em busca de algo também. Sempre tentei ver com esses olhos. Depois que fui personagem do Trajetos, isso ficou mais forte em mim”, comenta.
Criadora da página no Facebook “Chácara Arcampo da Depressão”, Laís diz que um dos grandes trunfos do filme é mostrar um lado desconhecido dos lugares retratados. “Achei muito lindo me ver, porque é muito difícil ver meu bairro nas telas como algo positivo, sabe? Sempre que retratam o lugar onde moro, mostram a violência, as partes negativas. Ver imagens da rua por onde passo todos os dias, do ônibus que eu pego, das casas foi incrível”, comemora. “Tem amigo meu que nem sabia onde eu morava e agora sabe. Fico feliz, porque tenho muito orgulho de ser da Baixada”, diz.
José Alsanne diz que seu trabalho apresenta narrativas que não encontram espaço nos meios oficiais. “Teve um plano que filmei no Ponto Chic, em Nova Iguaçu, em que os despachantes ficaram muito incomodados. Depois, entendi: os moradores contaram que havia uma denúncia, porque os ônibus estavam demorando demais”, lembra o diretor. “São lugares que estão tão perto da Globo, mas tão longe ao mesmo tempo… É uma distância muito cruel. A mídia possui um poder, mas as pessoas do subúrbio não o têm à disposição”, analisa.
O diretor, que viveu uma rotina parecida com a de seus personagens, conta que se identificou especialmente com a história de Lidi de Oliveira, moradora do Parque Paulista, em Duque de Caxias. “A distância é parecida com a que eu percorria e as questões também, como o fato de, indo para o Centro, você entrar em contato com pessoas diferentes das do lugar onde mora, de ver as coisas, as fábricas, as lojas, a Via Dutra mudando… A janela vira uma vitrine diária: o mesmo programa todos os dias, com a mesma duração.”
Excelente, adorei a reportagem e muito surpresa com os vídeos que me encantaram. É um universo paralelo.
Claudia Lessa