Muito mais do que de marmelada e de goiabada, todo dia é dia de alegria e trabalho (não necessariamente nesta ordem) sob as lonas do Instituto UniCirco Marcos Frota, nome fantasia do Instituto Cultural e Assistencial São Francisco Assis. Criada pelo ator e por seu irmão Luiz Frota – também artista, além de economista -, a entidade atende atualmente a 630 alunos em quatro núcleos no Rio: Quinta da Boa Vista, Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, e Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde tem duas unidades. Em funcionamento desde 2010, o UniCirco é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Os alunos são jovens em situação de risco social e todos foram aprovados em audições feitas nas comunidades. Desenvolver talentos e fomentar a renovação do circo fazem parte do trabalho, que tem na empregabilidade seu objetivo final.
Os jovens circenses saem com formação em trapézio, tecido, acrobacia de solo e aéreas, arame, malabares, dança, arte de palhaço, báscula, trampolim acrobático e lira. E, também, aptos a trabalharem em contrarregragem, sonoplastia, iluminação, figurino e segurança do trabalho. Os professores e instrutores são, em geral, ex-alunos que se profissionalizaram. Do outro lado do picadeiro, o resultado deste prazeroso esforço pode ser conferido por um respeitável público composto, em sua maioria, por pessoas sem muito acesso à cultura, em espetáculos de uma hora e meia apresentados, gratuitamente, no núcleo principal do UniCirco, na Quinta da Boa Vista. A apresentação ocorre todos os finais de semana e feriados, sempre às 15h e às 17h. Em cena, 30 alunos e 36 artistas formados ou em formação.
“Distribuímos 2500 ingressos por espetáculo. Nossa capacidade é de 1400 espectadores, mas em média vão 1200. Não aparece todo mundo porque muita gente não tem dinheiro para a condução até lá. Também oferecemos ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia) na bilheteria, mas costumamos vender apenas uns 10, às vezes cinco. Só funcionamos realmente com patrocínio”, explica Luiz Frota, o coordenador de Planejamento do UniCirco. O principal patrocinador é a Petrobras. Os recursos não saem pela Lei Rouanet, como um projeto cultural, mas pela área de Responsabilidade Social da empresa, já que o UniCirco oferece oficinas abertas a iniciantes até a profissionalização. “Marcos põe muito dinheiro do bolso dele também. Na verdade, é o patrocinador junto como a Petrobras, porque o patrocínio não cobre todos os custos”, complementa.
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Veja o que já enviamosA engrenagem que faz a alegria dos artistas e do público exige investimentos. Todos os quatro núcleos do UniCirco têm professores, gestores, psicólogos, profissionais em Serviço Social, técnicos e funcionários administrativos. Fora os artistas, que cumprem várias funções. As aulas são ministradas de terça a sexta-feira. Só em Santa Cruz, são 350 alunos. A lona fica na Comunidade de Vila Paciência, na Favela do Aço, onde já existia um trabalho social anterior, feito pela Ação Comunitária De apoio psicossocial (Acaps). Lá, o objetivo é formar artistas amadores, assim como nos dois núcleos de Duque de Caxias. Um deles funciona desde o ano passado na Escola Municipal Campos Elíseos, localizada num bairro violento do município, onde, além dos alunos do Ensino fundamental 2, de 11 a 17 anos, também podem participar das oficinas todos os jovens moradores do entorno. Outro núcleo está sendo implantado no Jardim Balneário Ana Clara, e deve ser inaugurado agora em abril. Os alunos estão sendo selecionados.
O UniCirco já teve lonas instaladas no Morro do Fallet, no Rio Comprido, e no Complexo do Alemão. Mas a primeira – que ainda está lá, com todos os equipamentos – teve que parar de funcionar depois que a ONG local, parceira do instituto, fechou. Já a segunda, inaugurada “na raça”, segundo Frota, num período em que a entidade ficou sem patrocínio, entre 2015 e 2016, acabou sendo desativada no ano passado, porque a extensão do projeto de patrocínio da Petrobras para o local não foi aprovada pela estatal.
Hoje, a UniCirco tem 80 profissionais contratados (por MEI ou cooperativa), fora alguns voluntários. Um professor considerado top, por exemplo, ganha R$ 1600. O instituto conta ainda com convênios com as prefeituras do Rio e de Duque de Caxias, o governo do estado e a Fiocruz, além da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), que envia estagiários de áreas como Serviço Social, Engenharia e Design.
“Tem uma estudante que começou desenvolvendo novos aparelhos para os números circenses, e agora vai fazer doutorado em políticas públicas”, conta Frota.
Filhos de uma família de classe média paulista, Marcos e Luiz não têm raízes no circo. Mas, por anos, tentaram se equilibrar entre trabalhos formais e a carreira artística num grupo de teatro que se profissionalizou nos anos 1980. Marcos acabou se destacando ao ganhar o papel principal na peça “Feliz Ano Velho”, baseada na história de seu autor, Marcelo Rubens Paiva, que ficou tetraplégico ao subir em uma pedra para mergulhar em uma lagoa, imitando o Tio Patinhas. Paiva tinha 20 anos quando o acidente ocorreu. A lagoa era rasa, e ele destruiu uma vértebra, perdendo os movimentos do corpo. O então ator iniciante conseguiu o personagem num teste em que tinha que dar um salto e cair num colchão alto. Dali para novelas da Globo foi outro salto.
“Em 1992, Marcos pegou um cirquinho furado, recuperou e nós o montamos no interior do Ceará. Não tinha cadeiras, nada. Botamos para funcionar cobrando ingressos. Foi melhorando, e fomos para Fortaleza, onde o prefeito era Ciro Gomes. A Secretaria de Educação começou a fomentar a iniciativa, e viramos o Grande Circo Popular do Brasil”, relembra Luiz, hoje com 65 anos (o irmão é dois anos mais novo).
Em 1993, com o patrocínio de uma loja, o circo foi trazido para o Rio, com um espetáculo dirigido por Jorge Fernando. Foi nesta época, pós-chacina da Candelária, que os irmãos Frota começaram a pensar em algo maior do que as apresentações. Filhos de uma assistente social, eles acompanharam o surgimento de iniciativas nas comunidades e com pessoas carentes, capitaneadas pela artista plástica Yvonne Bezerra de Mello – que atendia as oito crianças assassinadas na ocasião por policiais militares no Centro do Rio com seu projeto Uerê – e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que se dedicou à Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Mas foi só em 2000 que o Instituto UniCirco Marcos Frota foi criado. E, a partir de uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, em Montes Claros, no Norte de Minas, a tenda foi armada lá.
“Era o começo do governo Lula. Tivemos 800 alunos. Mas acabou o dinheiro e ninguém queria nos patrocinar. Já em 2003 para 2004, conseguimos recursos via Lei Rouanet, e fomos para o interior de São Paulo, na região de Campinas. Tivemos dois mil alunos em sete cidades do entorno do Parque Hopi Hari, até que, de novo, perdemos o patrocínio, com a crise econômica de 2008”, conta.
A vinda para o Rio aconteceu dois anos depois, após a cidade ganhar as candidaturas para sediar jogos e a final da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. A Quinta da Boa Vista foi escolhida para a instalação da tenda por conta de seu potencial popular. “Migramos do teatro para o circo porque nosso objetivo é colocar a linguagem circense (em que cabem todas as modalidades artísticas: artes plásticas, música, teatro, inovação tecnologia…) a serviço da educação pública”, resume Frota.
Sorte de jovens como Michel Azevedo, hoje com 24 anos, que, aos 9, foi apresentado ao circo pela irmã gêmea, Michele, já aprendendo a se equilibrar na perna de pau, em tecidos e no trapézio desde que passou a frequentar a Acaps, na Favela do Aço. Os pais estavam desempregados e tinham seis filhos.
“Fiquei com inveja. Queria participar também. Cheguei ao UniCirco uns cinco ou seis anos depois, já com uns 15 anos, em 2011”, lembra Michel, hoje especialista em acrobacia e portagem (segurar os demais artistas, seja no chão, como em pirâmides, seja no ar, como no trapézio).
Ele fez parte do projeto pedagógico do instituto por um ano e, por ter se destacado, entrou para a equipe técnica e, um ano e meio depois, para a contrarregragem. Levou mais dois anos para chegar ao picadeiro e, em 2014, tornou-se professor do UniCirco. Primeiro, no Morro do Fallet, onde ficou por dois anos. Agora, é instrutor na Quinta. O trabalho que vem desenvolvendo já proporcionou ao acróbata duas viagens ao exterior:
“A primeira, em 2016, foi profissionalmente: passei três meses me apresentando num cruzeiro entre a Suécia e a Estônia. Mais recentemente, pude custear uma viagem para a Argentina e o Chile a passeio. O circo me deu isso”.
Agora, além de Michele, que também se tornou professora do circo, sua irmã mais nova, de 22 anos, também está se dedicando ao ofício. Até a sobrinha Micaela, de 7 anos, passou a frequentar as aulas. “Dá para viver de circo sim. Ganho salário da UniCirco, e sempre pintam eventos. Nunca deixa de entrar uma graninha”, garante Deivid da Cruz Camelo, que, como Michel, começou no UniCirco nas primeiras turmas, ainda em 2010, aos 16 anos. Morador do Morro do Alemão, ele participou de oficinas de circo do Afroreggae antes de conhecer o instituto:
“Nunca fui de ficar na rua. Fiz capoeira, natação. Pouco depois de começar as aulas no UniCirco pintou a oportunidade de trabalhar. Um pouco depois me chamaram para a equipe artística. O circense aprende um pouco de tudo, mas minhas especialidades são acrobacia e portagem”, diz ele, que, além de coordenador da contrarregragem, é instrutor pedagógico desde o ano passado e dá aulas em Caxias.