A possibilidade de se gerar a energia elétrica que se consome em casa e na empresa – ou, pelo menos, parte disso – é bastante atraente. Especialmente naquele dia do mês em que chega a cada vez mais cara conta de luz. Além da remuneração da geração em si (e do lucro do operador), essa conta inclui custos de transmissão da eletricidade de sua fonte inicial até as tomadas e bocais e mais uma série de impostos e taxas. Tudo isso somado, chega-se a cifras que pesam, e muito, nos orçamentos de pessoas físicas e jurídicas.
A geração distribuída – modalidade em que a energia elétrica é produzida em pequenas instalações, localizadas junto ou, pelo menos, mais próximo a quem consome, e que há tempos é adotada na Europa – começa a ganhar espaço no Brasil. Além da economia, esse sistema tem como grande vantagem o fato de utilizar exclusivamente fontes renováveis e, aqui, a mais usada é a fotovoltaica, que usa a luz do sol como “combustível”. Uma boa novidade é que, se não houver lugar ou possibilidade de instalação de painéis solares no próprio endereço do consumidor, já é possível contratar espaço e equipamento necessários em um outro local, num condomínio: a energia gerada lá é injetada na rede elétrica e o valor equivalente ao seu quinhão do negócio é descontado de sua conta de luz.
Na prática, além da possibilidade de reduzir as despesas, esse novo modo de gerar, distribuir e remunerar a eletricidade poderá proporcionar uma mudança radical no segmento, promovendo sua descentralização e democratização – um processo que já está acontecendo em países como Alemanha e Dinamarca e que, não por acaso, está na agenda oficial da Comunidade Europeia.
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Veja o que já enviamosGrandes hidrelétricas em queda
Diz um ditado popular que “não se deve colocar todos os ovos no mesmo cesto”. Um sábio conselho que, no que diz respeito à energia elétrica, talvez não tenha sido levado suficientemente em conta no planejamento e implantação de usinas de geração aqui no Brasil. Somos famosos por nossas gigantescas hidrelétricas, algumas delas entre as maiores do mundo. E por longuíssimas linhas de transmissão, interligando a maior parte delas em um só sistema, o Sistema Integrado Nacional – SIN, que por sua vez controla e liga essas usinas a quase sempre distantes centros urbanos e industriais. A grande distância implica em, custo, perdas de corrente (cerca de 15%) e nos torna vulneráveis aos humores da natureza – tempestades maiores podem interromper partes vitais do sistema e, em casos extremos, como já aconteceu, provocar grandes apagões, atingindo regiões inteiras do país.
[g1_quote author_name=”Daniel Seleme Dora” author_description=”CEO da Clube Watt, condomínio de energia solar” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nosso principal objetivo é promover a mudança de hábitos de consumo em relação a eletricidade. Temos acesso às contas de luz de nossos associados, analisamos seus padrões de consumo e, tendo isso como base, procuramos ajudá-los a otimizar a utilização desses recursos
[/g1_quote]Para complicar, com as mudanças climáticas que se tornaram mais perceptíveis nas últimas décadas, o regime de chuvas – e, com ele, a quantidade de água nos rios – passou a afetar e limitar a eficiência das hidrelétricas. Para se ter uma ideia, em 1990, as hidrelétricas produziram 93% da eletricidade do país, mas em 2016 essa proporção foi de apenas 66%. Como solução inicialmente paliativa, foram contratadas e construídas caras e poluentes usinas termelétricas alimentadas por óleo, carvão mineral e gás natural.
Com a crescente oferta de gás que os novos campos de petróleo do pré-sal proporcionam, a tendência é que as térmicas aumentem sua participação na matriz energética nacional e, de paliativas, se tornem permanentes, pelo menos pelos próximos 20 ou 30 anos. Embora sejam proporcionalmente menos agressivas ao meio ambiente do que suas “irmãs” a carvão e a óleo, essas usinas emitem quantidades expressivas de CO2, o principal “ingrediente” do que conhecemos como aquecimento global.
Seu lote sob o sol
É neste ponto que a geração distribuída entra no enredo. Regulamentada a partir de 2012 pela Resolução Normativa 482 da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL e complementada pelas Resoluções 687/2015 e 676/2015, ela contempla apenas fontes renováveis com potência instalada de até 75 kW – como comparação, a usina de Itaipu, no Paraná, possui 14.000.000 kW. E tem nas energias solar, na eólica, nas chamadas PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas, que também tem lá seus efeitos colaterais socioambientais) e na utilização da biomassa os seus carros-chefes. Entre essas, por seu menor custo, maior facilidade de implantação e menor impacto socioambiental, a energia do Sol, captada por meio de painéis fotovoltaicos, é a que mais vem crescendo no Brasil – que fica em uma das regiões da Terra mais propícias para o funcionamento desse tipo de sistema.
O conceito, como mencionamos lá no início desta matéria, é que o próprio consumidor final possa gerar a energia que usa, abatendo esse percentual da fatura da distribuidora oficial. E se gerar mais do que gasta, esse excedente é injetado na rede e medido pelo mesmo relógio que controla a entrada, resultando em crédito em kW em sua conta. Como exemplo, na área de atuação da distribuidora Enel, no Estado do Rio de Janeiro, já existem 2.419 clientes conectados pelo sistema de geração distribuída, com painéis solares instalados em suas casas ou empresas e usufruindo de descontos em suas contas mensais.
No caso dos condomínios, o mecanismo é exatamente o mesmo, com a diferença de que a energia será injetada na rede do distribuidor em um outro ponto, mas será computada da mesma forma. Você aluga um lote de produção dentro de uma dessas unidades e, a partir dela, gera eletricidade por um custo menor (mesmo incluindo a “taxa de condomínio”), ganhando créditos para sua conta de luz. A única exigência é que a distribuidora que recebe a sua “produção energética” seja a mesma que atende a sua casa ou empresa. Aos poucos, empresas de diferentes portes e propostas já começam a oferecer esse tipo serviço.
Com atuação na capital e interior de São Paulo, Minas Gerais e no Mato Grosso, a NewSun é uma dessas pioneiras. Entre seus clientes, por enquanto, estão apenas pessoas jurídicas – 12 empresas já estão sendo efetivamente atendidas pelas quatro unidades que já estão em operação e outras sete firmaram contratos, aguardando apenas a entrada de novas unidades. Nos últimos 12 meses, a empresa gerou 560 MWh de energia, traduzidos em uma economia de aproximados R$ 135 mil nas contas de seus clientes.
No permanentemente ensolarado interior do Ceará, o primeiro condomínio do estado foi viabilizado por um contrato entre uma grande rede de farmácias regional – sugestivamente chamada Pague Menos – e a Enel X, empresa do Grupo Enel especializada em soluções de energia. Os lotes de microgeração ficam no município de Limoeiro do Norte, abrigam 3.420 painéis fotovoltaicos, em uma área total de 35 mil m2, com uma potência instalada de 1,1 MWp, que seriam suficientes para abastecer cerca de 900 residências. A geração total é de 1.500 MWh, que serão descontados nas contas de 38 farmácias da rede no estado.
Pode parecer pouco em comparação ao consumo de cidades inteiras, mas, na ponta do lápis verde, gerar esse montante de energia limpa equivale anualmente a despejar menos 230 toneladas de CO2 no meio ambiente, a uma economia de cerca de 2 bilhões de litros de água e ao plantio de 1.368 árvores no mesmo prazo.
Além deste, a Enel X possui outros dois projetos em São Luis do Curu, também no interior cearense, um com três usinas de fotovoltaicas com 394kWp de potência instalada, e outro com duas usinas que somam 171,6kWp. Também no Nordeste, outra novata, a Nature Green, trabalha para a implantação de 10 unidades com capacidade de 5 MWh cada – a primeira delas, em Ipojuca (PE), já está em construção.
Com um perfil um pouco diferente, a startup ClubeWatt começa a dar seus primeiros passos do outro lado do país, no Rio Grande do Sul, e nasceu – segundo seu CEO, Daniel Seleme Dora, de uma pergunta: “Se a legislação permite que qualquer um gere energia em casa, por que tão poucas pessoas se interessaram por isso?” Depois de pesquisar, ele e sua equipe descobriram que, basicamente, o que afastava os interessados eram a complicação de fazer um projeto, a burocracia a enfrentar para aprová-lo e o custo para sua implantação. “Decidimos então oferecer um modo com que esse consumidor interessado só precisasse acessar um site e se inscrever para poder obter os créditos na conta de luz. O Clube cuida do resto”, diz Daniel.
Lançado em março deste ano, o Clube aceita inscrições de todas as regiões do país e já conta com mais de 200 pré-associados – pessoas que pagam uma taxa (R$ 50 para pessoas físicas, R$ 500 para jurídicas) de reserva, que será devolvida caso não seja atendido em até um ano, sem que o inscrito deixe de ser associado. A implantação de novas unidades depende basicamente de haver demanda suficiente para um condomínio na região pretendida.
O primeiro condomínio do Clube já está sendo implantado no campus da PUC do Rio Grande do Sul. Além da própria instituição – que poderá se tornar virtualmente autossuficiente em energia – 15 outros associados pessoas físicas irão se beneficiar dessa instalação. “Uma vez que que o projeto seja aprovado, a instalação é rápida e em até três meses o associado passa a receber os créditos em sua conta. O valor inicial é de 20% do que for gerado, mas esse percentual vai crescendo progressivamente, ano a ano (com a amortização dos investimentos iniciais).
Além da energia, o clube dá aos seus sócios direito a uma consultoria sobre eficiência energética. “Nosso principal objetivo é promover a mudança de hábitos de consumo em relação a eletricidade”, explica o CEO. Temos acesso às contas de luz de nossos associados, analisamos seus padrões de consumo e, tendo isso como base, procuramos ajudá-los a otimizar a utilização desses recursos”, diz ele.
Sócio investidor
Para obter créditos na conta de luz é necessário gerar a energia em sua própria região, mas essa não é a única maneira de lucrar com os condomínios solares. Mesmo que eles estejam a milhares de quilômetros da sua casa você pode se associar a um deles como investidor – recebendo remuneração sobre a comercialização do que for produzido. Nesse campo, a Alemanha largou na frente e, hoje, associações e cooperativas de energia formadas por cidadãos já começam a ter um papel relevante no abastecimento, especialmente no interior. Só para se ter uma ideia, no primeiro leilão para compra pelo governo de energia eólica – lá o sol não brilha o tempo todo como aqui, mas venta bastante –, realizado em 2017, nove entre as dez propostas vencedoras vieram desse tipo de organização coletiva.
Aqui no Brasil, pelo menos no médio prazo, unidades de geração distribuída dificilmente terão um papel quantitativamente tão significativo na matriz energética. Embora venha crescendo em ritmo acelerado e interessado, também, a grandes companhias, segundo a ANEEL, a geração fotovoltaica ainda representa menos de 1,5% da capacidade de produção do país. Só para comparar, as centrais geradoras eólicas já representam 9,13%. Seu maior ganho, no entanto, está na maior facilidade e custo baixo de instalação, o que viabiliza a multiplicação de pequenos empreendimentos. E também torna possível seu uso em regiões remotas e que dificilmente teriam acesso à rede elétrica integrada pelo Sistema Integrado Nacional e onde vivem, hoje, cerca de três milhões de brasileiros.
Um exemplo bacana disso vem do Território Indígena do Xingu, onde um projeto capitaneado pelo Instituto Socioambiental – ISA vem instalando pequenas unidades de geração em locais que, antes, dependiam quase que exclusivamente de geradores a diesel. Até agora, já foram instalados 70 sistemas fotovoltaicos, com potência total combinada de 33.260 kWp em 65 aldeias, com ótimos resultados. Além de diminuir a necessidade de verbas públicas – é o governo quem paga pelo diesel –, o novo sistema é mais confiável. Antes, era comum o combustível acabar e haver demora no abastecimento, ou os geradores pararem para manutenção. Os painéis garantem mais qualidade de vida, ajudando a alimentar seus postos médicos e escolas, e dão maior autonomia aos indígenas, sem comprometer seu modo de vida. Energia limpa e democrática a favor da cidadania.
Puxa, é maravilhoso saber que os índios já estão se beneficiando desse recurso de energia limpa e sustentável que apesar de representar apenas 1,5% do total da energia gerada no país, vem crescendo mais de 200% ao ano.