Netflix: cada um na sua bolha

Plataforma de streaming, que já tem mais de seis milhões de assinantes no país, contribui para distanciamento entre pais e filhos

Por Gisela Campos | ODS 4 • Publicada em 30 de maio de 2017 - 09:58 • Atualizada em 30 de maio de 2017 - 15:58

ILLUSTRATION – The logo of video streaming company Netflix can be seen on the display of a laptop screen in Berlin, Germany, 17 December 2016. Photo: Alexander Heinl/dpa
Brasil é o terceiro maior mercado da Netflix fora dos Estados Unidos:  poder hipnótico. Foto: Alexander Heinl/dpa

Aqui em casa somos quatro: eu, a adolescente Manuela, a cachorrinha Mel e… a Netflix! Quem manda em nós é a Netflix. Paira acima de nós feito uma bolha suspensa, hipnotizando-nos e controlando cada movimento nosso. Em todo o Brasil, somos mais de seis milhões de assinantes em transe, contribuindo para um faturamento anual de cerca de R$ 1,2 bilhão. Para que se tenha uma ideia, a Netflix só pousou no Brasil há cinco anos, mas já conquistou mais assinantes do que a Sky e tem uma receita maior do que a do SBT. Só perde para a onipresente Net. A empresa não divulga seus números de forma oficial:  todos os números aqui mencionados são calculados por empresas especializadas através de logins na internet, tráfego de dados e pesquisas de mercado, com margem de erro de até 10%.

Precisos ou imprecisos, os números mostram que o Brasil entre os três maiores mercados da Netflix fora dos Estados Unidos, junto com Canadá e Reino Unido.  Mas como essa nossa dedicação às séries e à programação da Netflix está afetando nossas vidas? Aqui em casa, eu e a adolescente convivemos mais – ou menos – à medida em que compartilhamos uma mesma série.

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Todo esse lindo e forte vínculo mãe e filha cai por terra, entretanto, quando escolhemos séries diferentes para assistir. Entramos em bolhas isoladas: cada uma entregue a seu próprio Deus-dará, assistindo a seus episódios, muitas vezes de fones nos ouvidos, em um mesmo sofá, mas em planetas completamente outros

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Quando estamos assistindo a uma mesma série, ficamos muito unidas: nossos comentários giram em torno dos personagens, da trama, do suspense, das piadas. Nossas refeições, a hora de dormir, de tomar banho, os finais de semana, todas as nossas ações são então compartilhadas. Passamos a habitar um mesmo universo digital, compulsivo, querendo ver o maior número possível de episódios de uma vez. Viramos cúmplices, parceiras daquela religião que nos habita quando mergulhamos juntas em uma série da Netflix.

Adolescentes que passam muito tempo em  frente ao computador ficam com as habilidades sociais prejudicadas. Foto: Jacques Loic / Photononstop

Todo esse lindo e forte vínculo mãe e filha cai por terra, entretanto, quando escolhemos séries diferentes para assistir. Entramos em bolhas isoladas: cada uma entregue a seu próprio Deus-dará, assistindo a seus episódios, muitas vezes de fones nos ouvidos, em um mesmo sofá, mas em planetas completamente outros. “Cada um em seu computador, televisão ou smartphone, vivendo seus próprios interesses”, explica a psicóloga Glauce Corrêa da Silva, doutora pela UFRJ e psicóloga responsável pelo Núcleo Integrado de Psicologia Clínica e Hospitalar da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. “Vejo que os pais usam as tecnologias em casa para espairecer e trabalhar, mas acabam se isolando e deixando de conhecer de perto seus filhos. Muitos conhecem seus filhos através de redes sociais compartilhadas, ou sabem dos seus comportamentos e notas através de relatórios disponibilizados pelas escolas na internet.”

Para meu alívio pessoal de mãe, não é só aqui em casa que isso acontece: com o crescimento da Netflix, cada vez mais famílias possuem mais de uma assinatura da plataforma de streaming de vídeos. Dessa forma, pais e filhos acabam assistindo a filmes ou séries diferentes, mesmo dividindo o mesmo sofá. Estatísticas apontam que um assinante norte-americano assiste, em média, a 1 hora e 33 minutos, por dia, da programação da Netflix.

E como este novo comportamento pode afetar as relações familiares?

Em 2015, uma pesquisa da Global Mobile Consumer Survey,  que entrevistou 2.000 pessoas, entre 18 a 55 anos, em todas as regiões brasileiras, mostrou que 57% das pessoas que possuem smartphones acessam o aparelho menos de 5 minutos depois de acordar. Deste total, 35% o fazem imediatamente após despertar.

“Minha percepção é que, com o advento da Netflix, este comportamento piorou, na medida em que cada um vê, às vezes, a mesma coisa, porém solitários em seus próprios aparelhos, não gerando interação entre as pessoas. Cada um em seu tempo”, diz Glauce.

Estudo recente publicado pela revista Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine  revela que as habilidades sociais dos adolescentes que permanecem muito tempo à frente da televisão ou do computador ficam prejudicadas. Para a psicóloga, “a convivência pessoal traz vivências que não são adquiridas quando os jovens estão parados em frente a uma televisão. Não se pode viver em um mundo de fantasias, em que as experiências não são reais. Tentativas, erros e acertos trazem conhecimento e maturidade e isto é insubstituível.”

Existe todo um universo em transição. Ainda não conseguimos definir ao certo o tamanho do impacto das novas tecnologias sobre as relações familiares. Quem quiser uma dica para criar um plano de uso de internet em família, clique aqui: https://www.healthychildren.org/English/media/Pages/default.aspx#wizard.

Aqui em casa, faremos um esforço de forma que a Netflix perca este poder hipnótico sobre nossas vidas. Neste momento, confesso que só a cachorrinha escapa: imune a seu poder, Mel a ignora. Compartilham o mesmo lar, mas transitam realidades paralelas. Chegaremos lá.

Gisela Campos

É publicitária e jornalista. Mestre em Literatura Brasileira e autora dos romances As ideias todas (Record), As boas vindas (Relume Dumará) e Bill e a máquina do tempo (Diadorim). Mora em Botafogo com a filha Manuela e a cachorrinha Mel.

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