Aqui em casa somos quatro: eu, a adolescente Manuela, a cachorrinha Mel e… a Netflix! Quem manda em nós é a Netflix. Paira acima de nós feito uma bolha suspensa, hipnotizando-nos e controlando cada movimento nosso. Em todo o Brasil, somos mais de seis milhões de assinantes em transe, contribuindo para um faturamento anual de cerca de R$ 1,2 bilhão. Para que se tenha uma ideia, a Netflix só pousou no Brasil há cinco anos, mas já conquistou mais assinantes do que a Sky e tem uma receita maior do que a do SBT. Só perde para a onipresente Net. A empresa não divulga seus números de forma oficial: todos os números aqui mencionados são calculados por empresas especializadas através de logins na internet, tráfego de dados e pesquisas de mercado, com margem de erro de até 10%.
Precisos ou imprecisos, os números mostram que o Brasil entre os três maiores mercados da Netflix fora dos Estados Unidos, junto com Canadá e Reino Unido. Mas como essa nossa dedicação às séries e à programação da Netflix está afetando nossas vidas? Aqui em casa, eu e a adolescente convivemos mais – ou menos – à medida em que compartilhamos uma mesma série.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Todo esse lindo e forte vínculo mãe e filha cai por terra, entretanto, quando escolhemos séries diferentes para assistir. Entramos em bolhas isoladas: cada uma entregue a seu próprio Deus-dará, assistindo a seus episódios, muitas vezes de fones nos ouvidos, em um mesmo sofá, mas em planetas completamente outros
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Veja o que já enviamosQuando estamos assistindo a uma mesma série, ficamos muito unidas: nossos comentários giram em torno dos personagens, da trama, do suspense, das piadas. Nossas refeições, a hora de dormir, de tomar banho, os finais de semana, todas as nossas ações são então compartilhadas. Passamos a habitar um mesmo universo digital, compulsivo, querendo ver o maior número possível de episódios de uma vez. Viramos cúmplices, parceiras daquela religião que nos habita quando mergulhamos juntas em uma série da Netflix.
Todo esse lindo e forte vínculo mãe e filha cai por terra, entretanto, quando escolhemos séries diferentes para assistir. Entramos em bolhas isoladas: cada uma entregue a seu próprio Deus-dará, assistindo a seus episódios, muitas vezes de fones nos ouvidos, em um mesmo sofá, mas em planetas completamente outros. “Cada um em seu computador, televisão ou smartphone, vivendo seus próprios interesses”, explica a psicóloga Glauce Corrêa da Silva, doutora pela UFRJ e psicóloga responsável pelo Núcleo Integrado de Psicologia Clínica e Hospitalar da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. “Vejo que os pais usam as tecnologias em casa para espairecer e trabalhar, mas acabam se isolando e deixando de conhecer de perto seus filhos. Muitos conhecem seus filhos através de redes sociais compartilhadas, ou sabem dos seus comportamentos e notas através de relatórios disponibilizados pelas escolas na internet.”
Para meu alívio pessoal de mãe, não é só aqui em casa que isso acontece: com o crescimento da Netflix, cada vez mais famílias possuem mais de uma assinatura da plataforma de streaming de vídeos. Dessa forma, pais e filhos acabam assistindo a filmes ou séries diferentes, mesmo dividindo o mesmo sofá. Estatísticas apontam que um assinante norte-americano assiste, em média, a 1 hora e 33 minutos, por dia, da programação da Netflix.
E como este novo comportamento pode afetar as relações familiares?
Em 2015, uma pesquisa da Global Mobile Consumer Survey, que entrevistou 2.000 pessoas, entre 18 a 55 anos, em todas as regiões brasileiras, mostrou que 57% das pessoas que possuem smartphones acessam o aparelho menos de 5 minutos depois de acordar. Deste total, 35% o fazem imediatamente após despertar.
“Minha percepção é que, com o advento da Netflix, este comportamento piorou, na medida em que cada um vê, às vezes, a mesma coisa, porém solitários em seus próprios aparelhos, não gerando interação entre as pessoas. Cada um em seu tempo”, diz Glauce.
Estudo recente publicado pela revista Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine revela que as habilidades sociais dos adolescentes que permanecem muito tempo à frente da televisão ou do computador ficam prejudicadas. Para a psicóloga, “a convivência pessoal traz vivências que não são adquiridas quando os jovens estão parados em frente a uma televisão. Não se pode viver em um mundo de fantasias, em que as experiências não são reais. Tentativas, erros e acertos trazem conhecimento e maturidade e isto é insubstituível.”
Existe todo um universo em transição. Ainda não conseguimos definir ao certo o tamanho do impacto das novas tecnologias sobre as relações familiares. Quem quiser uma dica para criar um plano de uso de internet em família, clique aqui: https://www.healthychildren.org/English/media/Pages/default.aspx#wizard.
Aqui em casa, faremos um esforço de forma que a Netflix perca este poder hipnótico sobre nossas vidas. Neste momento, confesso que só a cachorrinha escapa: imune a seu poder, Mel a ignora. Compartilham o mesmo lar, mas transitam realidades paralelas. Chegaremos lá.