Evasão recorde no 1º ano do ensino médio no Pará

Na rede pública do estado, série apresenta os piores resultados de todo o ensino básico brasileiro

Por Catarina Barbosa | ODS 4 • Publicada em 10 de novembro de 2017 - 19:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 17:43

Sala de aula dos alunos do turno da manhã, na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Nossa Senhora Guadalupe, no bairro do Tapanã, em Belém (Foto: Catarina Barbosa)

Sala de aula dos alunos do turno da manhã, na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Nossa Senhora Guadalupe, no bairro do Tapanã, em Belém (Foto: Catarina Barbosa)

Na rede pública do estado, série apresenta os piores resultados de todo o ensino básico brasileiro

Por Catarina Barbosa | ODS 4 • Publicada em 10 de novembro de 2017 - 19:00 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 17:43

(Em colaboração com Flavia Milhorance) Moradora de Belém, Camille Paraense, de 22 anos, não passou do primeiro ano do ensino médio. Após repetir duas vezes a série, desistiu dos estudos. “Foi motivo besta”, diz Camille, que, no entanto, descreve uma discussão séria com a mãe como o estopim para largar a escola e se mudar para Goiatuba, em Goiás, a dois mil quilômetros da capital paraense. “Ela me bateu e me chamou dos piores nomes. Eu fiquei muito sentida e fui para a casa da vovó. Nessa época, eu já estava em depressão, mas não sabia, aí parei de frequentar a escola”, lembra ela.

Leu essas? Todas as reportagens da série “Ensino (abaixo do) médio”

A história de Camille, que voltou à sua cidade natal com planos de completar os estudos, não é exceção na rede pública paraense. O Pará tem o maior índice de evasão escolar do Brasil no ensino médio, segundo dados divulgados em 2017 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Ao todo, 15,9% dos alunos matriculados neste nível abandonam os estudos. No primeiro ano do ensino médio, a taxa também é recorde: 16,3% dos alunos não concluem a série, contra 12,9% da média nacional. O índice paraense não é o maior apenas comparado ao primeiro ano de outros estados. Ele é o maior de todas as séries da educação básica de todas as regiões brasileiras.

Camille Paraense, 22 anos, vai fazer o Encceja: abandonou a escola no primeiro ano do ensino médio (Foto Catarina Barbosa)
Camille Paraense, de 22 anos, vai fazer o Encceja: ela abandonou a escola no primeiro ano do ensino médio (Foto: Catarina Barbosa)

Nesta série de reportagens, o #Colabora investiga as razões do fracasso ainda maior no ano inicial do ensino médio, que deveria representar o começo da jornada do estudante rumo à universidade ou da busca por sua vocação profissional.

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O cenário desanimador do Pará é resultado de uma região com sérios desafios socioeconômicos associados a fatores que surgem numa fase especialmente importante da vida do estudante. “A evasão escolar não é algo repentino”, diz Marina Gattás, coordenadora de projetos da Fundação Brava, entidade que participou da elaboração de um mapeamento sobre a evasão no ensino médio no Brasil. “Os sintomas começam no ensino fundamental, com o impacto da pobreza, da violência e da qualidade da escola, mas vimos que a evasão costuma ocorrer no ensino médio, quando há mais coisas desviando a atenção do jovem, como o mercado de trabalho”, explica.

Drogas, violência sexual e agressões

Mas os problemas vão muito além de tornar a escola mais próxima do mundo real. Professora de português e literatura da escola estadual de ensino médio Pedro Amazonas Pedroso, Helem Suzandrey Sousa descreve casos que vão de violência contra educadores a abusos sexuais contra alunos e a falta completa de infraestrutura para ensinar.

Concursada há sete anos, a professora Helem denuncia violências contra os professores, principalmente, as mulheres (Foto: Catarina Barbosa)

“Dizer que a culpa é só do aluno seria injusto. Esse jovem muitas vezes tem pais que não têm um projeto de vida. Então, eles refletem o que vivem em casa. São filhos cujos pais não têm sonhos, projeções e o pior: muitas vezes eles ainda são vítimas de violência ou até mesmo resultado de violência. Tenho uma aluna de 14 anos, que, desde os 9, foi estuprada pelo padrasto, como esperar um bom desempenho escolar de uma pessoa com esse histórico de vida?”, questiona.

O padrasto da jovem está foragido, mas histórias como a dela são comuns, segundo a professora. ”A gente infelizmente tem muitos casos como esse, de abuso na família. Então, imagina: eles chegam aqui revoltados. A sala de aula se torna um lugar para eles descarregarem energia, tristeza, rancor. Quem estiver perto é que leva a pancada. E quem é? O professor. Ele sofre o impacto de todos os problemas sociais desse jovem”, diz.

Aviso fixado na biblioteca da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Nossa Senhora Guadalupe, no bairro do Tapanã, em Belém (Foto: Catarina Barbosa)

A consequência são professores fragilizados, e as principais vítimas são mulheres. “Grande parte dos alunos não tem respeito pela professora, logo, elas se tornam um alvo fácil de agressão verbal e física. Existem ‘n’ casos de professoras agredidas em sala de aula que não deram em nada. E o que você tem são professores com a saúde mental debilitada, que não dormem”, diz.

Há péssimas condições de estrada, em especial na zona rural; localidades ribeirinhas sem transporte escolar, muitas sem acesso à internet e sem sequer escolas de nível médio

Rodrigo Moraes
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará

Mais da metade do corpo docente do ensino público está em greve por tempo indeterminado no Pará. Para Helem, são claras as razões da insatisfação: “Nosso sistema educacional é precário. Não temos reconhecimento, e o governo nos priva de uma série de direitos. Então, os professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem”, desabafa. “E o Pará é imenso. Se formos pensar nas dificuldades das comunidades ribeirinhas, a educação piora; a evasão escolar nem se fala. Se aqui a gente já tem problema, imagina em Curralinho, que tem o pior IDH do Brasil”, diz.

O colégio Pedro Amazonas Pedroso não integra alunos repetentes com os demais. Por isso, o turno da manhã aceita adolescentes com até 16 anos; à tarde, até 17 anos; e à noite, aqueles acima de 18 anos.  “Essa foi uma forma que encontramos de não atrapalhar o desempenho de quem nunca repetiu”, justifica  Helem.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Educação do Pará não se posicionou sobre esse ou outros desafios da educação na região.

O difícil caminho até a escola

No caso do estado, os sintomas que culminam com a evasão escolar se potencializam com a dimensão geográfica e sua precária mobilidade, segundo Rodrigo Moraes, mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará.

“Há péssimas condições de estrada, em especial na zona rural; localidades ribeirinhas sem transporte escolar, muitas sem acesso à internet e sem sequer escolas de nível médio”, lista Moraes, que vai além: “E as questões socioeconômicas são fundamentais, mas a escola precisa falar a língua do jovem. Imagina um adolescente de 14 anos em uma sala de aula sem ventilador às 15h de uma sexta-feira tendo três aulas de matemática? A escola é atrativa para o jovem?”.

O maior problema é a insegurança. Eu já presenciei três ameaças de alunos de uma escola rival. A maioria dos ataques foi na parte da manhã, e as pessoas saíram feridas. Não sei o motivo da briga entre os colégios

Nayara Cristina Conceição Câmara
Estudante

O Pará também amarga a pior taxa do Brasil de alunos que concluem o ensino médio até os 19 anos: apenas 37,5%, segundo levantamento do Movimento Todos Pela Educação com base no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E por que continuar na escola? Num estado onde a evasão não é a exceção, Rodrigo Moraes perguntou a alunos do primeiro ano de uma escola pública da periferia de Belém não os motivos para sair, mas o que os mantêm lá.

Filhos de trabalhadores com baixo nível educacional, suas perspectivas de concluírem o ensino médio e seguirem para o ensino superior são limitadas. A tendência, segundo Moraes, é que esses jovens comecem a trabalhar cedo. Mas percebeu neles aspirações maiores do que supunha.

“O que me surpreendeu foi que, antes de pensarem em ingressar no mercado de trabalho, esses jovens sonham com a universidade, querem se formar e aí, sim, ter um bom emprego”, comentou Moares, que entrevistou alunos de 15 anos, sem defasagem idade-série, para sua tese de mestrado concluída ano passado pela Universidade Federal do Pará.

Ele percebeu que os alunos com perspectivas de seguir estudando criticam a estrutura escolar, mas elogiam ações de professores que contribuíam para sua formação e encaram a escola como um meio para chegar onde querem.

Nayara Cristina Câmara: a adolescente nunca repetiu de série (Foto: Catarina Barbosa)

De olho no futuro

A estudante do primeiro ano Nayara Cristina Conceição Câmara, de 15 anos, é dessas que nada contra a maré. Moradora do Conjunto Habitacional do Canarinho, em Belém, nunca repetiu de série. Ela estuda numa zona violenta e conta que seu colégio acaba sendo afetado. “O maior problema é a insegurança. Eu já presenciei três ameaças de alunos de uma escola rival. A maioria dos ataques foi na parte da manhã, e as pessoas saíram feridas. Não sei o motivo da briga entre os colégios”, comenta.

Nayara é criada pela tia, que trabalha como babá e diarista, e o marido da tia, pedreiro. Sobre o futuro, ela sonha com a estabilidade econômica: “Minha mãe [tia] me motiva sempre. Eu quero me formar na universidade para poder dar uma vida melhor para ela”, comenta.

Camille Paraense, de volta a Belém, quer fechar um ciclo: no próximo dia 19, ela fará a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), que pode lhe garantir o título de conclusão do ensino médio. Mas, por enquanto, prefere não pensar muito longe e segurar as expectativas. “’Bora ver como vai ser”, resume.

A série de reportagens “Ensino (abaixo do) médio” conquistou o segundo lugar na categoria Estatísticas Educacionais do Prêmio Inep 2017.

Catarina Barbosa

Formada pela Universidade da Amazônia (Unama), tem experiência em rádio, TV, impresso e online. Trabalhou no Diário do Pará, no G1 Pará, na TV Liberal (afiliada da Rede Globo) e na agência de jornalismo independente Amazônia Real. Em 2017 ganhou o Prêmio Inep de Jornalismo (2º lugar) por uma reportagem sobre evasão escolar publicada no #Colabora.

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