ODS 1
A ofensiva do Escola Sem Partido
Movimento quer mudar legislação e entrar com ações na Justiça para controlar conteúdo das aulas
Professores punidos pelo conteúdo de suas aulas. Docentes preocupados se um dos alunos vai dedurá-los por tratarem de temas como desigualdade social e igualdade de gêneros. Cenas não vistas em colégios brasileiros desde o fim da ditadura militar podem ser legitimadas por leis e ações na Justiça caso o Movimento Escola Sem Partido seja capaz de concretizar suas propostas.
Criado em 2004 para acabar com o que chama de doutrinação ideológica em sala de aula, o ESP ganhou força nos últimos dois anos na esteira do racha político no país e na forma de projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e em assembleias legislativas de oito estados – em um deles, Alagoas, já foi aprovado.
[g1_quote author_name=”Henrique Estrada” author_description=”Professor da PUC-Rio” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A escola vira lugar de denúncia, de investigação, de flagrante, do Ministério Público. Se essa judicialização vingar, estaremos criando uma escola de delatores
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Veja o que já enviamosNas redes sociais o tema viralizou impulsionado por situações como a invasão do Instituto Central de Ciências da UnB, que estava ocupado por um protesto de estudantes. Numa ação chamada de Endireita UnB, o grupo se posicionou contra as manifestações de esquerda dos alunos, houve depredação e confronto. A líder Kelly Cardoso, codinome Kelly Bolsonaro, usou três hashtags ao justificar o ato no Facebook: #SemPerseguição, #ForaDoutrinaçãoNaUnB e #EscolaSemPartido. A doutrinação nas escolas também foi um dos temas do encontro do ministro da Educação, Mendonça Filho, então recém empossado por Michel Temer, com o ator Alexandre Frota e o ex-pastor Marcello Reis, fundador do Revoltados Online.
Para os críticos, as propostas do ESP levam a judicialização ao ambiente escolar. “A escola vira lugar de denúncia, de investigação, de flagrante, do Ministério Público. Se essa judicialização vingar, estaremos criando uma escola de delatores”, opina o professor Henrique Estrada, do Departamento de História da PUC-Rio, um dos participantes de um encontro em favor da diversidade nos colégios, na Casa de Rui Barbosa, organizado pelo Historiadores pela Democracia.
São Francisco de Assis X Che Guevara
O procurador do estado de São Paulo Miguel Nagib deciciu criar o Movimento Escola sem Partido por causa de um episódio que ele alega ter ocorrido na escola de sua filha, na época com 14 anos. “Um professor de história, bom professor, mas cuja linha política eu já conhecia, comparou São Francisco de Assis a Che Guevara”, conta o procurador, que na época reagiu prontamente. “Escrevi uma carta aos pais, questionando a postura do professor, e distribuí pessoalmente na saída da escola”. No texto, Nagib comparava a Oração de São Francisco (“onde houver ódio que eu leve o amor… É dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado…”) com o texto publicado por Guevara na revista cubana Tricontinental, em 1967, que pregava o “ódio como fator de luta, o ódio intransigente do inimigo, que eleva o homem acima dos seus limites naturais e o transforma numa fria máquina de matar: nossos soldados têm de ser assim. Um povo sem ódio não pode triunfar sobre um inimigo brutal”. O protesto de Nagib não teve o efeito esperado. “A direção da escola me chamou para uma reunião e negou o ocorrido, e os alunos fizeram uma passeata em defesa do professor”.
[g1_quote author_name=”Miguel Nagib” author_description=”Criador Escola Sem Partido” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muitos pais não conhecem seus direitos
[/g1_quote]Nagib não se deu por vencido. Buscou inspiração em dois sites americanos, que não existem mais, e, pouco tempo depois, nasceu na rede a página do Escola Sem Partido, que hoje destaca, por exemplo, um modelo de notificação extrajudicial, anônima, para pais que quiserem se prevenir “contra o abuso da liberdade de ensinar por parte do professor”.
Mas ações extrajudiciais já não são suficientes para a estratégia da ESP e, por isso, Nagib criou a Associação Escola Sem Partido: “A Lei da Ação Civil Pública permite que associações como a nossa façam suas demandas na Justiça”. Ele, no entanto, não pensa em ações diretamente contra professores. “Não sei se caberia, mas daremos orientação aos pais que quiserem fazer isso. Muitos pais não conhecem seus direitos”.
Perseguições nas redes sociais
Um dos mais fortes opositores do ESP é o grupo Professores Contra o Escola Sem Partido, já com 22 mil seguidores no Facebook. Seu fundador, o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Penna diz que o movimento opera com uma lógica de denúncia anônima. “Mas não é uma denúncia como a do Ministério Público, não há investigação. Eles ficam na denúncia, sequer entram em contato com os professores. Mas basta a denúncia para o nome do professor ser divulgado na internet. Alguns estão sendo demitidos e perseguidos pelas redes sociais”, denuncia Penna.
Penna tomou conhecimento da existência do ESP quando descobriu o Projeto de Lei 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB-DF), que inclui as propostas do Escola Sem Partido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e está em discussão na Comissão de Educação da Casa. “Comentei isso com minhas turmas e ninguém sabia de nada. Insisti bastante e começamos a tentar criar uma forma de fazer circular críticas a isso. Daí nasceu o movimento, na UFF, e hoje tem pessoas que colaboram de todo o país”.
Outras vozes contrárias são os sindicatos. Diretor de Comunicação do Sindicato de Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (SinproRio), Márcio Franco considera o movimento uma agressão à liberdade de opinião. “Eles usam uma teoria bonita, de apartidarismo, mas em sua essência pregam a volta ao obscurantismo. É um movimento de direita, muito mais ideológico do que os atos que ele critica, e com apoio de lideranças conservadoras, viúvas da ditadura militar”.
Comparação com o estupro
Nagib diz não considerar o movimento de direita e, em resposta aos protestos dos professores de que o movimento quer acabar com a liberdade de expressão, ele faz uma interpretação da Constituição.
“Nossa ideologia é a da Constituição, que diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Nossa proposta seria inconstitucional se o professor tivesse liberdade de expressão em sala de aula. Se o professor pudesse dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto, não seria obrigado a transmitir o currículo obrigatório aos alunos”.
[g1_quote author_name=”Miguel Nagib” author_description=”Criador Escola Sem Partido” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É tênue a linha entre o galanteio, o assédio e o estupro. Há casos de estupro que são decididos em três votos contra dois pelo júri. Se a dificuldade de comprovar a prática de um ato ilegal impedisse a lei de descrever esse ato, não teríamos o Código Penal
[/g1_quote]Mas como diferenciar uma aula sobre a Revolução Russa de 1917 e doutrinação de esquerda? Nagib reconhece que é tênue, às vezes, a linha entre a aula propriamente dita, a discussão normal e cabível sobre assuntos do momento e a alegada doutrinação. “Assim como é tênue a linha entre o galanteio, o assédio e o estupro. Há casos de estupro que são decididos em três votos contra dois pelo júri. Se a dificuldade de comprovar a prática de um ato ilegal impedisse a lei de descrever esse ato, não teríamos o Código Penal”.
O movimento prega que essas sutis diferenças podem ser resolvidas como a afixação obrigatória dos cartazes com os deveres do professor, previstos na Constituição, segundo Nagib. Na primeira vitória no legislativo do ESP, no entanto, o cartaz foi abolido. O projeto de Ricardo Nezinho (PMDB), chamdo de Escola Livre, foi aprovado em Alagoas após a derrubada do veto do governador Renan Filho pela assembleia. “O deputado tirou o cartaz do projeto para fazer política. Nossos adversários não querem que seus alunos fiquem sabendo dos deveres do professor”.
‘Pornomarxismo’
No site do Escola Sem Partido, é possível encontrar textos de oposição à discussão sobre igualdade de gênero e à educação sexual nas escolas. “Eles deixam muito óbvio o machismo e a misoginia deles. Participei de rodas de conversa sobre gênero numa escola ocupada e tive ali uma dezena de exemplos que provaram que é uma violência indescritível impedir essa discussão nas escolas”, diz Renata Aquino, uma das organizadoras do Professores Contra o Escola Sem Partido.
[g1_quote author_name=”Francisco Carlos” author_description=”Professor da UFRJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Para combater o pornomarxismo, nada melhor que uma entrevista com Alexandre Frota
[/g1_quote]Mas os tabus não dizem respeito apenas a sexo. Textos com críticas ao capitalismo presentes em apostilas já foram denominados “pornomarxismo” por simpatizantes das propostas do ESP. No debate na Casa de Rui Barbosa, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Francisco Carlos Teixeira da Silva não perdeu a piada: “Para combater o pornomarxismo, nada melhor que uma entrevista com Alexandre Frota”.
O historiador não foi o único a ironizar o apoio do ex-galã (o MEC afirmou que essa era a pauta, mas o documento entregue pelo ator se referia a outros temas). Memes invadiram as redes. Nagib não conhece Frota, mas não se importa: “Não quero saber o que ele faz da vida, mas se ele apoia o Escola Sem Partido, só posso aplaudir. Se o Lula quiser defender o projeto, se a Dilma também, se o José Dirceu sair da cadeia e apoiar o projeto, vou aplaudir”.
Mas afinal qual a posição das escolas? O Sindicato dos Estabelecimentos de Educação Básica do Município do Rio de Janeiro (SinepeRio), por exemplo, diz que cada escola tem sua doutrina e não é contra ou a favor. Diretor do Colégio Andrews, na Zona Sul do Rio, Pedro Flexa Ribeiro, diz ser pessoalmente contrário, mas vê no movimento um ponto mais amplo, de oposição “tosca, equivocada” à Base Nacional Curricular Comum (BNCC), uma consulta à sociedade sobre o que deve constar no currículo escolar aberta durante o governo do PT e deixada agora em compasso de espera pela gestão de Mendonça Filho. Mas Flexa Ribeiro também tem criticas à BNCC, que ele julga muito abrangente. “Português e matemática. Deviam escolher essas duas matérias, fazer uma base comum só com elas pra ir sedimentando”, diz Flexa Ribeiro.
Professor da UnB e vice-presidente da Associação Escola Sem Partido, Bráulio Tarcísio Pôrto de Matos acha que a BNCC, criada em 2014, é uma reação às ideias do movimento . “Como hipótese, diria que a versão da BNCC apresentada pelo MEC, de forte viés esquerdista e elaborada às pressas por em Executivo ameaçado de sofrer impeachment, mal esconde sua ansiedade em marcar território contra a bandeira defendida pelo ESP”.
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Jornalista, começou como repórter do jornal O Fluminense, de Niterói, e redator da revista Incrível, da Editora Bloch. Trocou tudo pra ser repórter de Cidade do Jornal do Brasil, até sair pra ser repórter da revista Istoé Gente. De 2005 a 2016, foi editor do Jornal do Commercio, editor de Empresas, Economia, Mundo, Rio, SP, Brasília, Minas, Opinião, Direito & Justiça e, principalmente, País. Colaborou com o blog O Cafezinho em 2016 e 2017, e em 2018 participou da aventura da volta do Jornal do Brasil impresso, como editor-assistente de Política. Agora, batalha por uma causa dada como perdida: o jornalismo literário
Sou Professor aposentado de História no RJ.. Durante a ditadura militar não se podia abordar assuntos espinhosos sob o ponto de vista político e lecionei até na Vila Militar sem problemas. Todo e qualquer assunto político deve ser abordado de forma transparente. mostrando uma notícia ou um fato sem comentários. Se abordo o marxismo não vou fazer apologia de seu fundador…
Não entendo nada dessa ideia. Queria entender mais. Sou professor e acredito que a sala de aula é o espaço para todo tipo de assunto ser abordado. Eu tenho meus posicionamentos, meus alunos têm os deles, os livros mostram visões diferentes. O que fazer?