Os restos que ficam pelo caminho

A tristemente banal história de Charles, Joaquim ou Heleno, um reciclador de adversidades

Por Paulo Ritter | ArtigoODS 10 • Publicada em 27 de maio de 2024 - 09:31 • Atualizada em 4 de junho de 2024 - 09:55

Charles, como é conhecido pelos moradores de Santa Teresa, com o lixo que recolhe todos os dias. Foto Paulo Ritter

Todas as sextas-feiras pela manhã, quando vou à feira, é comum encontrá-lo na calçada sob a sombra dos oitis. Paraibano de 52 anos, talvez pernambucano, Charles chegou à cidade maravilhosa nos anos 80. É difícil reconstituir seu passado, pois ele apresenta uma condição psíquica – psicose – que costuma embaralhar a realidade. Na verdade, até seu nome é difícil precisar, pois, apesar da vizinhança conhecê-lo por Charles, já disse se chamar Joaquim e outras vezes Heleno. Com frases curtas e rápidas, conta que dorme na Praça da Cruz Vermelha, não possui documentos e os parentes moram longe. Para sobreviver, recolhe material reciclável nas ruas da região central do Rio.

Na feira, compro frutas e legumes com o Joaquim, e reparo nos alimentos jogados nos lixos improvisados atrás das barracas: os restos que ficam pelo caminho.

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Nas grandes cidades, muita coisa vai ficando pelo caminho. O Rio de Janeiro, por exemplo, joga fora a cada dia cerca de 9 mil toneladas de lixo. Outros dejetos além dos materiais também são produzidos: os dejetos humanos. Atualmente, por volta de 8 mil pessoas moram nas ruas do Rio – Charles é uma delas. Se tirarmos os olhos das telas e olharmos para o lado, é fácil perceber essa realidade.

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Como disse, não é difícil encontrá-lo pelas manhãs nas ruas de paralelepípedo de Santa Teresa, recolhendo seu sustento. Mesmo as adversidades não o impediram de ser criativo, já que construiu sua própria condução com uma porta velha, pedaços de madeira e rodinhas de rolimã. Muitas vezes o vi descendo as ladeiras do bairro, abarrotado de material reciclável, manejando seu veículo de coleta com os pés, como devia fazer com seu carrinho de rolimã na infância no Nordeste. Coleta de material reciclável e veículo não-poluente: sem saber, Charles está na vanguarda.

Atualmente ele sobe e desce as ladeiras a pé, com os sacos às costas, pois a Guarda Municipal – segundo seu relato – apreendeu seu instrumento de trabalho na Praça Onze, num dos últimos Carnavais no Rio.

O material recolhido é vendido, como ele mesmo diz, na Apoteose. Certamente lhe pagam um valor irrisório, como são os valores pagos aos catadores individuais que não pertencem às cooperativas ou associações.

Charles tem olhos inchados, avermelhados, com uma secreção viscosa permanente. Ele coça-os repetidas vezes com as mesmas mãos que vasculham os lixos. O nariz também tem uma secreção constante. Diz que não vai a médicos, nunca foi. Na pandemia do coronavírus eu o via com máscaras descartáveis. Comprava-as ou utilizava as que encontrava no lixo? Ou recebia de alguém?

Ao vê-lo na sua batalha diária, sempre lembro do aforismo atribuído a Gandhi: “a verdadeira medida de qualquer sociedade pode ser encontrada em como ela trata seus membros mais vulneráveis”.

São essas mesmas sociedades implacáveis que, cada vez mais, necessitam de imensa quantidade de matéria-prima para manter o funcionamento de suas engrenagens, produzindo toneladas de resíduos. Uns se beneficiam das engrenagens, outros são moídos.

A verdadeira medida de qualquer sociedade pode ser encontrada em como ela trata seus membros mais vulneráveis.

Mahatma Gandhi
Ativista indiano

Hoje sabemos que essas duas pontas precisam estar conectadas – a tal economia circular –, a fim de evitar o colapso que se anuncia no horizonte. Talvez Charles não tenha noção, mas ele é justamente um dos que sustentam essa conexão com seu valoroso trabalho. Uma rápida pesquisa na internet me informou que os catadores informais recolhem cerca de 90% do material reciclável, no Brasil, mas ficam com apenas 25% dos ganhos do setor; a maior parte, óbvio, fica com as indústrias, que já estão de olho nesse negócio lucrativo. Chamam isso de “lógica reversa” – acho que “lógica perversa” seria mais adequado.

Afinal, a perversão é o próprio modo de funcionamento de nosso sistema econômico e social, no qual as pessoas mais vulneráveis sempre ficam com as sobras. Às vezes com a sobra dos porcos, como Jorge Furtado mostrou magistralmente no seu “Ilha das Flores”.

A dureza da vida de Charles poderia ser minimizada se ele contasse com uma rede de suporte efetiva, amparada em políticas públicas mais consistentes e eficientes. Instrumentos para isso, em vários níveis, existem: reconhecimento da profissão de catador, planos nacional e municipal de resíduos sólidos, cooperativas de reciclagem, CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), consultórios de rua, abrigos etc.

Alô, Eduardo Paes: o que falta para que uma cidade como o Rio de Janeiro tire efetivamente do papel seu plano de resíduos sólidos e crie milhares de empregos no setor, voltados sobretudo para pessoas mais carentes?

No início do século XX, Freud criou a psicanálise a partir da valorização daquilo que era considerado, pela discurso científico da época, apenas restos psíquicos destituídos de valor. Foi assim que os sintomas histéricos, os sonhos e os atos falhos serviram como ponto de partida para a criação do edifício conceitual psicanalítico que se mantém de pé até hoje.

Enquanto isso, mais de um século depois, Charles por conta própria e contra todas as expectativas continua vivendo dos restos que estupidamente jogamos fora.

Migrante, morador de rua, miserável, pouco instruído e psicótico, ele foi sendo empurrado por sucessivos processos de exclusão – geográfica, social, econômica e psíquica – para a zona de dejetos que reservamos aos mais vulneráveis.

Charles sobrevive nesse espaço-tempo que lhe é próprio, aberto nos interstícios da cidade e habitado pelos resquícios da infância. Em ruas de paralelepípedo e ladeiras sinuosas, com carrinho de rolimã ou a pé, dormindo em praças ou nas calçadas, ele persevera na sua trajetória singular, como o bairro histórico que resiste à “revitalização”.

Sempre me pergunto quantos aguentariam manter a cabeça fora da água nas condições em que ele vive? Por quanto tempo?

Seu percurso lembra o de outra catadora – Estamira –, que viveu por mais de vinte anos no lixão de Gramacho, em Duque de Caxias, e teve sua vida retratada no épico documentário de Marcos Prado (“Estamira”). Seu quadro psicótico não a impediu de forjar um discurso original e crítico à nossa sociedade de consumo, produtora de outros tantos lixões nos arredores das grandes cidades.

Soube pelos jornais que ela morreu de septicemia em 2011. Com o braço inflamado e acompanhada do filho, aguardava a internação num hospital público do Rio de Janeiro; após ser internada, resistiu mais dois dias.

Volto da feira e o encontro novamente na rua. Ofereço-lhe uma fruta, ele aceita. Às vezes come, às vezes não, mas sempre agradece de modo efusivo, com vários “obrigados”.

Chego em casa e tomo um banho, preparo-me para o trabalho. Da varanda consigo avistá-lo na calçada, ao lado dos sacos de material recolhido. E fico me perguntando quanto tempo Charles ainda resistirá antes de ser tragado pelas engrenagens.

Paulo Ritter

Psicanalista, formado em Psicologia (UFRJ), com Especialização em Saúde Mental e Mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Trabalhou por 15 anos em ambulatórios de saúde mental na rede pública de saúde (SUS), em bairros distantes da Zona Sul carioca, frequentemente esquecidos pelas políticas públicas. Autor do livro "Neuroses atuais e patologias da atualidade", atualmente trabalha em consultório particular no Rio e é professor na Psicologia da Universidade Veiga de Almeida.
Email: paulo.ritter@hotmail.com

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