Declarar-se feminista pode ser muito fácil, se essa declaração não implicar em ato político consequente, ou muito difícil, por causa do estigma histórico que o termo carrega. Ainda hoje muitas mulheres, embora sejam afetadas por discriminações, usam uma frase tola – “sou feminina, não feminista” – como se fossem termos excludentes. Pretendo argumentar que ser feminina é necessariamente ser feminista, porque o fazer feminista diz respeito a enfrentar a diferença sexual que marca o feminino como elemento de inferiorização – na sociedade, na cultura, no mercado de trabalho e no campo simbólico em geral – em relação ao masculino.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”center” size=”s” style=”solid” template=”01″]A diferença sexual que inferioriza é uma questão ético-política em torno da qual giram as pautas do movimento de mulheres, cuja característica principal é não ter um caráter estável e pré-definido.
[/g1_quote]Há uma estranheza na língua portuguesa: o elemento “feminino” é uma palavra masculina. Estranho, ensina Freud, é ao mesmo tempo o mais familiar e o mais distante. Essa estranheza do idioma ressoa Freud e produz uma confusão interessante, porque a palavra feminino carrega nela também a sua diferença, o gênero masculino que a define no dicionário. A pequena confusão de gêneros serve ao meu propósito de discutir o problema da diferença sexual como um problema comum às mulheres – cis ou trans, usando a terminologia em voga, ainda que discorde do ideal de adequação que o termo cis carrega –, auto-declaradas feministas ou não. Que algumas pessoas considerem a diferença sexual parte natural da vida já é uma questão para as diversas correntes feministas.
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Veja o que já enviamosA diferença sexual que inferioriza é uma questão ético-política em torno da qual giram as pautas do movimento de mulheres, cuja característica principal é não ter um caráter estável e pré-definido. Existem feministas em diversas áreas de estudos acadêmicos – antropologia, ciências sociais, economia, comunicação, filosofia ciências políticas, literatura, estudos culturais, para ficar só nos exemplos mais óbvios – e a militância segue pelos mesmos caminhos diversificados. Liberais, radicais, anarquistas, marxistas, pós-estruturalistas, interseccionais, feminismo das mulheres negras, lésbicas, os movimentos refletem aquilo mesmo pelo que lutam: outras formas de fazer política que não sejam centralizadoras, autoritárias, hierárquicas. A melhor definição que conheço é da filósofa francesa Françoise Collin: o feminismo é um movimento plural, sem hierarquia, dogmas, controle ou estruturas centralizadas, que não defende uma verdade, mas está em permanente processo de construção de uma agenda que evolui e se modifica.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”center” size=”s” style=”solid” template=”01″]Fazer feminismo passa pelo debate sobre o que é o feminino e porque esse elemento da composição do humano – e portanto presente em homens e mulheres – é desestabilizador, ou não é feminino
[/g1_quote]Felizmente, o discurso feminista não se limita ao âmbito acadêmico ou militante e se espalha no tecido social. É nesse momento que enfrenta pelo menos um desafio: estabilizar-se, eliminando sua complexidade intrínseca. O Brasil, diz com muita razão um amigo querido, odeia a complexidade. Nuances, impasses, paradoxos, são elementos que não cabem numa cultura moldada pelas mais falsas dicotomias, a mais arraigada delas o bom x mau. Nesta toada, os movimentos feministas correm o risco de cair na armadilha de ser constrangidos a mulheres contra homens, o que nem de longe define a complexidade – repetição da palavra aqui é proposital – das reivindicações de diferentes grupos de mulheres.
Na chamada terceira onda feminista, que vem contagiando as jovens, muitas vezes essa disputa – já superada em algumas áreas em que o feminismo amadureceu com as gerações de mulheres militantes dos anos 1970 e 1980 que já enfrentaram esse debate – se renova de forma equivocada, mas talvez também necessária para que seja de novo superada.
Retomo aqui o argumento inicial. Fazer feminismo passa pelo debate sobre o que é o feminino e porque esse elemento da composição do humano – e portanto presente em homens e mulheres – é desestabilizador, ou não é feminino. Se o fazer feminista pode ser definido como uma forma política desestabilizadora das práticas de poder e opressão vigentes (a revolução será feminista, ou não será ), se dessa desestabilização o que se reivindica não é necessariamente uma nova ordem que reorganize os elementos para produção de novas formas de opressão a partir de um poder feminista, então passa a ser preciso discutir os feminismos, sempre no plural, e ao mesmo tempo sempre como uma posição singular que cada uma de nós assume neste discurso, nesta militância, neste fazer.