Feminismo, substantivo, plural

A singularidade de cada mulher não pode impedir a diversidade do movimento

Por Carla Rodrigues | Artigo • Publicada em 9 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 9 de março de 2016 - 16:29

Wall painting in Rio de Janeiro ,Brazil, South America
Wall painting in Rio de Janeiro ,Brazil, South America
Um muro no Rio de Janeiro: estranheza na língua portuguesa

Declarar-se feminista pode ser muito fácil, se essa declaração não implicar em ato político consequente, ou muito difícil, por causa do estigma histórico que o termo carrega. Ainda hoje muitas mulheres, embora sejam afetadas por discriminações, usam uma frase tola – “sou feminina, não feminista” – como se fossem termos excludentes. Pretendo argumentar que ser feminina é necessariamente ser feminista, porque o fazer feminista diz respeito a enfrentar a diferença sexual que marca o feminino como elemento de inferiorização – na sociedade, na cultura, no mercado de trabalho e no campo simbólico em geral – em relação ao masculino.

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A diferença sexual que inferioriza é uma questão ético-política em torno da qual giram as pautas do movimento de mulheres, cuja característica principal é não ter um caráter estável e pré-definido.

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Há uma estranheza na língua portuguesa: o elemento “feminino” é uma palavra masculina. Estranho, ensina Freud, é ao mesmo tempo o mais familiar e o mais distante. Essa estranheza do idioma ressoa Freud e produz uma confusão interessante, porque a palavra feminino carrega nela também a sua diferença, o gênero masculino que a define no dicionário. A pequena confusão de gêneros serve ao meu propósito de discutir o problema da diferença sexual como um problema comum às mulheres – cis ou trans, usando a terminologia em voga, ainda que discorde do ideal de adequação que o termo cis carrega  –, auto-declaradas feministas ou não. Que algumas pessoas considerem a diferença sexual parte natural da vida já é uma questão para as diversas correntes feministas.

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A diferença sexual que inferioriza é uma questão ético-política em torno da qual giram as pautas do movimento de mulheres, cuja característica principal é não ter um caráter estável e pré-definido. Existem feministas em diversas áreas de estudos acadêmicos – antropologia, ciências sociais, economia, comunicação, filosofia ciências políticas, literatura, estudos culturais, para ficar só nos exemplos mais óbvios – e a militância segue pelos mesmos caminhos diversificados. Liberais, radicais, anarquistas, marxistas, pós-estruturalistas, interseccionais, feminismo das mulheres negras, lésbicas, os movimentos refletem aquilo mesmo pelo que lutam: outras formas de fazer política que não sejam centralizadoras, autoritárias, hierárquicas. A melhor definição que conheço é da filósofa francesa Françoise Collin: o feminismo é um movimento plural, sem hierarquia, dogmas, controle ou estruturas centralizadas, que não defende uma verdade, mas está em permanente processo de construção de uma agenda que evolui e se modifica.

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Fazer feminismo passa pelo debate sobre o que é o feminino e porque esse elemento da composição do humano – e portanto presente em homens e mulheres – é desestabilizador, ou não é feminino

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Felizmente, o discurso feminista não se limita ao âmbito acadêmico ou militante e se espalha no tecido social. É nesse momento que enfrenta pelo menos um desafio: estabilizar-se, eliminando sua complexidade intrínseca. O Brasil, diz com muita razão um amigo querido, odeia a complexidade. Nuances, impasses, paradoxos, são elementos que não cabem numa cultura moldada pelas mais falsas dicotomias, a mais arraigada delas o bom x mau. Nesta toada, os movimentos feministas correm o risco de cair na armadilha de ser constrangidos a mulheres contra homens, o que nem de longe define a complexidade – repetição da palavra aqui é proposital – das reivindicações de diferentes grupos de mulheres.

Passeata no Dia Internacional da Mulher, na Austrália, em 2015

Na chamada terceira onda feminista, que vem contagiando as jovens, muitas vezes essa disputa – já superada em algumas áreas em que o feminismo amadureceu com as gerações de mulheres militantes dos anos 1970 e 1980 que já enfrentaram esse debate – se renova de forma equivocada, mas talvez também necessária para que seja de novo superada.

Retomo aqui o argumento inicial. Fazer feminismo passa pelo debate sobre o que é o feminino e porque esse elemento da composição do humano – e portanto presente em homens e mulheres – é desestabilizador, ou não é feminino. Se o fazer feminista pode ser definido como uma forma política desestabilizadora das práticas de poder e opressão vigentes (a revolução será feminista, ou não será ), se dessa desestabilização o que se reivindica não é necessariamente uma nova ordem que reorganize os elementos para produção de novas formas de opressão a partir de um poder feminista, então passa a ser preciso discutir os feminismos, sempre no plural, e ao mesmo tempo sempre como uma posição singular que cada uma de nós assume neste discurso, nesta militância, neste fazer.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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