Os integrantes da bancada evangélica que recorrem à Bíblia para tentar garantir, no projeto de lei das Fake News, o direito de discriminar homossexuais correm o risco de, com base no mesmo livro sagrado, abrirem caminho para a volta da escravidão.
Para condenar a homossexualidade, lideranças cristãs citam com frequência o versículo 22 do capítulo 18 do Levítico, terceiro livro do Antigo Testamento: “Não deitarás com um homem como se deita com mulher; isto seria uma abominação”. (Bíblia – Tradução Ecumênica, Edições Loyola e Paulinas, 1995).
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O mesmo Levítico, porém, dá, entre os versículos 44 e 46 do capítulo 25, instruções sobre como proceder no comércio de seres humanos: “Quanto aos servos e servas que vieres a ter, comprá-los-eis entre as nações que vos cercam; poderei também comprá-los entre os filhos dos moradores que vivem entre vós, ou em um dos clãs deles que habitam entre vós tendo-se radicado na vossa terra.”
Para deixar as normas ainda mais evidentes, o livro prossegue: “Eles serão vossa propriedade, que deixareis em herança a vossos filhos, a fim que de, depois de vós, os possuam como plena propriedade. A eles, poderei tê-los como escravos para sempre, mas vossos irmãos, os filhos de Israel…, ninguém da tua casa dominará seu irmão com brutalidade”. Ou seja: nenhum problema em escravizar e deixar pessoas como escravas, desde que as vítimas sejam de outros povos.
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Veja o que já enviamosA escravidão também é legitimada no Deuteronômio. Também do Velho Testamento, este livro, no seu capítulo 15, estabelece regras e prazo para a libertação dos servos hebreus. “Se dentre teus irmãos hebreus, um homem ou uma mulher se tiver vendido a ti, e se ele te serviu como escravo durante seis anos, no sétimo ano, tudo o deixarás partir livre de sua casa” (versículo 12).
Mais benevolente que o Império brasileiro, o livro ainda determina, em seguida, o pagamento de uma espécie de indenização a um ex-escravizado: “(…) não o deixarás partir de mãos vazias; cobri-lo-ás de presentes com o produto de teu rebanho, de tua eira e de teu lagar (…)”.
No mesmo capítulo, porém, o Deuteronômio, que teria sido escrito por Moisés – ou inspirado em suas palavras –, admite a possibilidade de um antigo servo permanecer com seus donos. Neste caso, o tratamento deveria ser implacável: “Mas se este escravo te diz ‘Não desejo sair de tua casa’, porque te ama, a ti e aos de sua casa, e porque ele é feliz em tua casa, então tomarás uma agulha e lhe fixarás a orelha contra a ombreira de tua porta, e ele será para ti um escravo perpétuo” (16-17).
O Novo Testamento também legitima a escravidão, em nome de Deus. Em sua Epístola aos Efésios, o apóstolo Paulo também mostra aos servos cristãos como deveriam se comportar (6, 5-6): “Escravos, obedecei aos vossos senhores deste mundo com temor e tremor, de coração simples, como a Cristo, não porque vos vigiam, como se procurásseis agradar aos homens, mas como escravos de Cristo que diligenciam por fazer a vontade de Deus”.
Para que não reste qualquer dúvida sobre a necessidade de um ser humano aceitar – “com temor e tremor”, vale repetir – ser submetido à escravidão, o apóstolo completa no versículo seguinte: “Servi de boa vontade, como se estivésseis servindo ao Senhor, e não a homens”.
No capítulo 5, versículos, 22-24, Paulo também diz como as mulheres devem se comportar: “(…) mulheres, sede submissas aos vossos maridos, como ao Senhor. Pois o marido é a cabeça da mulher, assim como Cristo é a cabeça da Igreja (…)”. E complementa: “Mas, como a Igreja é submissa a Cristo, sejam as mulheres submissas em tudo aos seus maridos”. “Em tudo”, ficou claro?
Lideranças cristãs têm razão ao frisar que, ao admitir e regular a escravidão, livros bíblicos apenas reproduzem pensamentos vigentes nos períodos em que foram escritos; poucos levam ao pé da letra as ordens que Paulo deu às mulheres. É preciso entender o contexto de cada época, levar em conta a evolução dos costumes, dos direitos de cada pessoa.
O problema é não utilizar essa mesma relativização em outros temas, como o da homossexualidade – textos redigidos há pelo menos dois mil anos e que tratam do assunto são vistos como imutáveis, servem de pretexto para discriminação, ódio e violência. Ao agirem assim, os que se apresentam como porta-vozes do cristianismo ignoram outro preceito bíblico, que pode ser visto como atemporal: “Dois pesos e duas medidas, / as duas coisas são horror para o Senhor”, (Provérbios, 20, 10).