A cidade das nossas crianças

Olhar infantil mostra a importância de resgatar as ruas para uma mobilidade mais humana

Por Clarisse Linke | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 5 de novembro de 2015 - 13:13 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:07

Parque que está sendo construído em Manguinhos, Zona Norte do Rio, volta a privilegiar as vias para carros e ônibus
Parque que está sendo construído em Manguinhos, Zona Norte do Rio, volta a privilegiar as vias para carros e ônibus
Parque que está sendo construído em Manguinhos, Zona Norte do Rio, volta a privilegiar as vias para carros e ônibus

Um indicador se uma cidade é bem planejada, com mobilidade urbana bem articulada, é o olhar das crianças. Áreas onde as crianças preferem andar são provavelmente as áreas onde a cidade está mais desenvolvida, mais humana, mais agradável.

Meus filhos compartilham comigo seus olhares. Julia, de sete anos, não gosta das pedras portuguesas porque as calçadas estão sempre esburacadas. A caminhada para escola é mais cansativa, as rodinhas da mochila prendendo no piso irregular. De patinete também fica mais perigoso, são muitas as quedas com tanto buraco. Nicholas, de quatro anos, pede diariamente para fazer o caminho para escola que inclui a banca de jornal, a praça, os peixinhos e a igreja. É o caminho mais longo, porém o que o deixa mais feliz e seguro por ter menos carros e mais encontros com pessoas, conhecidas ou não, possibilitando pequenas atividades, trocas de olhares e sorrisos.

Há mais de seis mil anos, as cidades foram organizadas em torno das ruas, o espaço para deslocamento, trocas e interação social. Nos últimos 50 anos, encantados com as promessas da cidade moderna, jogamos fora esta história e passamos a ignorar as funções sociais e econômicas das ruas. Elas passaram a ser tratadas apenas como elos de uma rede, conexões entre dois destinos. Com isso, omitimos aspectos significativos da escala humana, que fazem das ruas lugares relevantes como espaço público.

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O modelo de mobilidade urbana preponderante nas nossas cidades é formado por uma rede hierárquica de vias definidas para e a partir dos veículos motorizados. As avenidas arteriais definem os principais fluxos das cidades. Os quarteirões são mais longos e há menos cruzamentos. O volume e a velocidade do tráfego devem ser mantidos dentro de metas pré-determinadas. O desenho urbano garante o conforto, a linearidade do trajeto, a conectividade necessária para o carro passar. A cidade é pensada para ser vivida – e vista – a uma velocidade de 60 km/h. Nesta velocidade, o calçamento arrebentado pelas raízes das árvores não importa, os buracos nas pedras portuguesas que derrubam crianças e idosos não merecem atenção.

A busca pela modernidade está presente em todo canto. Nas cidades asiáticas, os riquixás são banidos. Nas cidades africanas – que de vilarejos rapidamente se tornam megalópoles – os grandes investimentos do Banco Mundial são para vias expressas com 8, 10, 12 faixas para tráfego motorizado. Nas cidades brasileiras, os condomínios fechados, monofuncionais, se gabam de seus certificados “verdes”, enquanto os pedestres caminham rente a muros intermináveis e sem nenhum atrativo, em longos quarteirões inóspitos, sem conectividade. As cidades precisam funcionar como máquinas: modernas, eficientes, fluidas.

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As ruas e calçadas são os órgãos mais vitais de uma cidade.

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O conflito entre usuários das ruas se intensifica a cada dia. Ao reconhecer este conflito entre pedestres, ciclistas e automóveis, engenheiros de tráfego e arquitetos optam por excluir os pedestres sob a pretensa justificativa de que é preciso protegê-los. Para protegê-los, tiramos seu espaço. Para protegê-los, fazemos com que andem mais para atravessar. Para protegê-los, normalizamos o medo do perigo que representa o carro, o espaço público, a cidade.

Um grande projeto de infraestrutura na cidade do Rio de Janeiro – prestes a ser entregue e fruto de uma parceria entre as três esferas do governo – propôs a elevação da via férrea de Manguinhos na zona Norte da cidade. Abaixo dela, vem sendo implementado um parque linear de 1,5km, dedicado ao lazer e à convivência. O objetivo era remover a barreira física (a linha férrea) que dividia o território e melhor conectar a comunidade aos equipamentos e serviços públicos, como escolas e creches. Como parte desta solução, em ambos os lados do parque linear estão diversas faixas de rolamento para automóveis e ônibus. O projeto de redesenho urbano criou uma nova barreira física, para substituir outra, formada por pistas que priorizam o fluxo de veículos motorizados, sem controle de velocidade nem um projeto estruturado de sinalização básica.

O Rio de Janeiro tem 60km/h como velocidade preponderante na cidade. Não precisamos ser engenheiros de tráfego para saber que quanto mais rápido estiver o motorista, menor a visão periférica, menor é a capacidade de perceber quem está no entorno e menor a chance de frear a tempo de proteger as vidas ao seu redor. A 60km/h, numa colisão entre carro e pedestres (ou ciclistas), a chance de fatalidade é acima de 90%.

Um projeto como o de Manguinhos, que se propõe a oferecer um espaço de qualidade para os moradores, parte do princípio de que as crianças atravessarão diariamente um mar de carros, trafegando a 60km/h, para chegarem às suas escolas? Que integração é esta? Que valores estamos ensinando às crianças quando os grandes projetos de infraestrutura deixa-as mais expostas e vulneráveis, mais desconectadas de suas comunidades?

Jane Jacobs, importante urbanista dos anos 60, não se cansava de repetir que “as ruas e calçadas são os órgãos mais vitais de uma cidade”. Precisamos resgatar essa lógica original das ruas. Precisamos sonhar e vislumbrar um novo paradigma de mobilidade urbana que enxergue a cidade em suas diferentes escalas, que proteja pedestres, dando-os mais opções de deslocamento, não menos. Que ouça seus cidadãos – independentemente de idade, classe social, bairro de residência – para de fato entender como se deslocam e, acima de tudo, como desejam se deslocar. Que inclua vozes dissonantes, para juntos criar projetos que façam sentido para a maioria.

Eloah, de 7 anos, me conta que tem preguiça de caminhar para a escola, mas gosta quando a mãe insiste porque somente quando caminham ela consegue ver as folhas das árvores caindo. Quando o pai a leva de carro, segundo ela, “não dá pra ver nada”. O planejamento da mobilidade do futuro exige uma nova pedagogia urbana, que reconquiste as ruas para que nelas nossas crianças tenham mais oportunidades de viver a cidade em sua plenitude. A cada dia que passa, me convenço que de fato são as crianças quem mais podem nos ensinar a resgatar esse olhar.

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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