Após um ano carregado de tragédias com refugiados, o tema das migrações se reflete no Festival de Berlim. Não como um espelho, mas como uma espécie de reação às imagens de desespero que, repetidas à exaustão nos meios de comunicação, colaram-se à figura do imigrante que chega à Europa. A sempre política Berlinale, que vai até domingo, dia 21, mostra uma busca do documentário contemporâneo por novas narrativas sobre o tema: quem são aqueles que cruzam a fronteira, que sonhos têm, que vida reinventam.
Por trás dos filmes, uma pergunta central: como se veem e como são vistos os imigrantes? Alguns cineastas deram a câmera aos protagonistas de suas obras, que se transformaram em codiretores. “Para falar sobre uma nova vida em Berlim, achava que tinha que mostrar a espera no centro de empregos, por exemplo, mas este é um local onde Colorado nunca filmaria. Ele queria filmar sua família no parque. É importante pensar nisso, até como uma política da imagem”, diz o alemão Philip Scheffner, diretor de “And-Ek ghes…” (Um belo dia…, em livre tradução) ao lado de Colorado Velcu, personagem central do filme.
Recém-chegado à capital alemã, Colorado saiu da Romênia devido ao preconceito sofrido pelas famílias de origem Roma (ciganos). Ele cuida sozinho dos filhos e não esconde as dificuldades – o trabalho pesado, o baixo salário, a espera por vagas na escola – mas tampouco se vitimiza. Como um metadocumentário, “And-Ek ghes…” mostra as próprias dúvidas de Colorado sobre o quê e como filmar e evidencia a encenação de situações, deixando claro que, na frente da câmera, sempre se desempenha um papel.
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Veja o que já enviamosEm “Les sauteurs” (Os saltadores), o protagonista Abou Bakar Sidibé também recebeu uma câmera dos diretores Estephan Wagner e Moritz Siebert para filmar a vida de Gurugu, onde centenas homens de toda parte da África acampam durante meses, à espera do momento ideal para saltar as três cercas que separam o Marrocos da Espanha. Esse momento pode ser indicado pelo latido dos cachorros “que protegem Gurugu dos demônios”, pela brisa, pela neblina que impede a visibilidade da polícia. “Os sinais podem ser muitos, mas ao mesmo tempo eles não significam nada”, reconhece Abou, do Mali.
Abou filma o horror: a comida queimada por policiais marroquinos, os ferimentos nas cercas, a notícia da morte. Filma também a esperança e a força de homens que ainda se dividem segundo a nacionalidade para organizar as tarefas e jogar futebol num imaginário Maracanã. Eles sabem como são tratados os refugiados na Europa, sabem que há uma crise econômica na Espanha, mas não querem muito: “Imagina arranjar um pequeno emprego, ouvir esta música lá com sua namorada”, diz um deles, enquanto vê do alto do morro os aviões pousarem e decolarem de Melilla, “a Europa em terra africana”.
“Les sauteurs” também exibe cenas da câmera de segurança, cedidas sem problemas pela polícia espanhola, para a surpresa dos diretores. “Nos demos conta de que a para a polícia elas são a prova de uma tentativa de invasão, enquanto nós vemos imagens frias de uma máquina, que mostram pontos negros, e não seres humanos”, afirma Moritz, ressaltando o contraste entre a desumanização do aparato policial e o olhar de Abou.
Essa desumanização ou distanciamento também é uma das estratégias de alguns documentários para refletir sobre como os imigrantes são vistos. Em “Havarie” (Avaria), de Philip Scheffner (o mesmo de “And-Ek ghes…”), as únicas imagens são as de um vídeo de três minutos e meio, expandidas em 90 minutos de projeção. Postado no Youtube em 2012 por um turista irlandês a bordo de um cruzeiro no Mediterrâneo, o vídeo mostra um barco de motor avariado, à deriva com refugiados. Scheffner filmou os envolvidos no resgate, mas optou por não usar nenhuma dessas cenas, apenas o áudio das entrevistas. Como nas câmeras de segurança, vemos pontos negros difusos na tela, e não seres humanos.
De modo bem menos radical, “Fuocoammare” (Fogo ao mar) também busca evidenciar a distância entre “nós” e “os outros”, que em “Havarie” é simbolizada pelo cruzeiro de turistas e um inflável de refugiados à deriva. Vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlin, o filme segue duas realidades quase em paralelo: a vida pacata dos europeus de Lampedusa, representada sobretudo pelo cotidiano de uma criança, e os africanos que chegam pelo mar. Eles tangenciam a vida da ilha ao serem atendidos pelo médico local ou quando são notícia na rádio. Vão embora, outros chegam, enquanto o mar continua dos pescadores e mergulhadores.
A opção de distanciamento pode não ser bem-sucedida. Em “Havarie”, a monotonia visual levou muita gente a sair do cinema. E “Fuocoammare”, o grande premiado da Berlinale, não arrebatou o público. Já nos outros dois filmes, não há como não torcer por Colorado, que continua vivendo em Berlim, e por Abou, hoje à espera de asilo no Sul da Alemanha. E isso acontece porque eles puderam não só narrar, mas reinventar as próprias vidas.
Colorado, que escreve diários desde adolescente, lê e faz autocríticas a alguns de seus escritos sobre a vida na Alemanha. Ao se envolver com o filme, compõe a música-tema “And-Ek ghes…”, cantada pelo filho e transformada num videoclipe inspirado no cinema de Bollywood. Abou, que recebeu dinheiro dos cineastas para não vender a câmera, vai aos poucos descobrindo o prazer de filmar, experimenta ângulos, compõe uma cena idílica da vista de Melilla com “I will always love you” tocando ao fundo, pelo celular. Não resta dúvida da importância daquela câmera em um ano de tentativas frustradas em Gurugu, até que ele consiga pular as três cercas e entrar na Europa: “Eu sinto que existo quando filmo”.