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Globo 60 anos: a instituição brasileira que produz todos os sentimentos, menos indiferença

Emissora repete o nome de uma das suas novelas, “Meu bem, meu mal”, na relação com a sociedade que influencia decisivamente

ODS 9 • Publicada em 1 de maio de 2025 - 19:03 • Atualizada em 2 de maio de 2025 - 11:30

“A Globo é a única pessoa jurídica neurótica que se conhece”. O diagnóstico, de um longevo e poderoso diretor da empresa que ficará anônimo pela impossibilidade de se conseguir autorização para a citação, está entre os mais divertidos e precisos, dos muitos sobre a gigante agora sessentona. Empreendimento brasileiro mais importante da história republicana, desperta todo tipo de sentimento, menos um: a indiferença. Para o bem ou para o mal, todo mundo presta atenção à Globo.

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A longa e barulhenta comemoração dos 60 anos e sua intensa repercussão ao mesmo tempo provam a patologia atestada pelo antigo executivo e confirmam a importância única da emissora. Ela forjou a pessoa mais poderosa de nosso tempo – seu criador, Roberto Marinho –, construiu monopólio massacrante, influenciou a política em todas as esferas de poder e produziu obras audiovisuais de excelência reconhecida em escala planetária.

Em verdade, a Globo lembra o título de uma das suas novelas, “Meu bem, meu mal” (1990/1), mas também se parece muito com um de seus mais tradicionais astros, Roberto Carlos: você pode não gostar, mas conhece quase toda a obra de cor. De Xuxa ao Jornal Nacional; da sortida teledramaturgia aos magistrais Jô Soares e Chico Anysio; de Galvão Bueno e Luciano do Valle ao Fantástico; de Amaral Netto, o Repórter (lembra?) ao Faustão; do desfile das escolas de samba cariocas ao BBB – o país inteiro viu, e vê.

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O poder da “emissora carioca” (como o bairrismo paulistano ama rotular) vai tão alto, tão fundo e tão longe, que torna impossível imaginar nossa sociedade sem ela. Nascida quase simultaneamente – e jamais por coincidência – com a ditadura militar de 1964, beneficiou-se dela para fulminar a concorrência. Está na monumental biografia “Chatô, o rei do Brasil”, de Fernando Morais: decreto do marechal-ditador Castelo Branco inviabilizou os Diários Associados, rede de rádios e TVs de Assis Chateaubriand, então a maior do país, e pavimentou caminho para a ascensão global.

Agradecida, a emissora não se constrangeu em apoiar o arbítrio – equívoco assumido, já na democracia, pelo próprio grupo de comunicação, que pediu desculpas públicas pelo malfeito. Quando o regime sucumbiu, duas décadas depois, demorou a pular do barco, e, na primeira eleição presidencial direta, produziu a absurda edição do debate final entre os candidatos Fernando Collor de Mello (preso essa semana por corrupção) e Luiz Inácio Lula da Silva, hoje presidente em terceiro mandato.

(Circula pela internet lista de 60 itens críticos à Globo, passando por todos os aspectos da vida brasileira. O levantamento permite debates, desqualificações e exaltações de todos os lados. Procure saber.)

A postura semeou ódio em parte da população ao longo dos anos – “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, gritaram manifestações à esquerda nos anos 1980 e 90, bordão-avô do “Globolixo” disseminado pela extrema-direita nas redes sociais do século 21. A distância ideológica dos detratores serve de prova, mais uma, da impossibilidade de ser indiferente à emissora.

Maior do que os esqueletos no armário, só a imensa competência artística e industrial do empreendimento. Desde sempre, a Globo investiu em equipamentos e estruturas para levar imagem de qualidade aos rincões do Brasil. Apostou, também, nos melhores profissionais da dramaturgia, da música e do jornalismo, alcançando resultado reconhecido internacionalmente.

Paulo Gracindo (Odorico), Dorinha Duval, Ida Gomes e Dirce Migliaccio, as irmãs Cajazeira, em “O bem-amado”: primeira novela colorida fez crítica política em plena ditadura. Foto reprodução

Em 1973, por conta do lançamento de “O Bem-Amado”, a primeira novela totalmente a cores, encomendou a trilha sonora inteira a Toquinho e Vinicius de Moraes – e ficou, claro, maravilhosa. A produção manteve o padrão, na trama de aguda crítica política (sob censura, não se esqueçam) escrita por Dias Gomes e protagonizada pelos incríveis Paulo Gracindo e Lima Duarte.

Formato popular em toda a América Latina, as telenovelas são a maior prova da perícia global. Firmaram tendências, inauguraram modismos, sacudiram mercados, eternizaram personagens e consagraram atores e atrizes. Estão tatuados na alma nacional bordões como “Tô certo ou tô errado?”, de Sinhozinho Malta (Lima Duarte) em “Roque Santeiro” (1985); “Né brinquedo, não!”, de Dona Jura em “O clone” (2001); “Eu salguei a Santa Ceia”, de Félix (Matheus Solano), em “Amor à vida” (2013); e “A culpa é da Rita”, de Carminha (Adriana Esteves), em “Avenida Brasil” (2020). Além de mistérios, paixões, rompimentos, golpes financeiros, dramas e tragédias familiares, em jornadas heroicas de todo tipo.

Ainda há agendas por cumprir. A diversidade nos elencos apenas engatinha, cada beijo gay é um parto, predominam cenários cariocas, o vício na grandiosidade gera certo imobilismo e caretice. Nos intervalos, o país das queimadas e da destruição ambiental merece ser poupado do indigno “Agro é pop, agro é tech, agro é tudo – tá na Globo”. Mas até os inimigos mais viscerais reconhecem a qualidade geral.

Na vida real, a Globo botou as Olimpíadas na vida da monoesportiva população viciada em futebol. Passou a cobrir os Jogos em 1980 (Moscou) muito antes de ser compensador em audiência e publicidade. Ajudou decisivamente na construição da paixão por ídolos como Ayrton Senna e Rebeca Andrade. Na vitória, no empate e na derrota, não largou a seleção canarinho e toda quarta e domingo, exibe os jogos dos grandes clubes.

Faz o mesmo com as escolas de samba do Rio e, mais recentemente, de São Paulo. No caso carioca, transmite há décadas o desfile, abrindo espaço generoso em seus noticiários ao assunto. Nem o eventual constrangimento pelo poder dos banqueiros do jogo do bicho tisna a parceria. Com ginga de mestre-sala, a emissora produziu “Vale o escrito” (o antológico documentário que ao mesmo deu voz e denunciou os contraventores) e manteve a aliança com os grêmios carnavalescos e seus donos. A maior manifestação cultural do país passa na Globo, e assim será pelos anos afora.

Roberto Carlos, Ivete Sangalo e Xuxa, na festa dos 60 anos: reencontros e esquecimentos que mobilizaram as conversas. Reprodução TV Globo

Por falar em futuro, ele vai virando presente na caótica democratização da comunicação, via streaming, e no desmoronamento do mercado publicitário, causado pela revolução tecnológica. A emissora tenta se atualizar, sem a liderança inspiradora e vigorosa de seu inventor, enquanto vê a audiência se pulverizar. A incerteza a fez encolher (uma tropa impressionante de artistas e jornalistas foi demitida ou mudou sua relação com a empresa), mas boa parte da influência segue de pé.

A efeméride do 60º aniversário serve de prova. Discutiu-se febrilmente os programas, as lembranças, as omissões, as fofocas. Faltou fulano, esqueceram sicrano, cadê beltrano – impossível encontrar um brasileiro imune às lembranças evocadas pelas produções globais. As tais emoções cantadas por Roberto Carlos, no especial de todo Natal, e na abertura da festa.

Aliás, daqui a pouco tem “Vale tudo”. E a Odete Roitman, hein?

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