Na minha infância e adolescência não era comum ver mulheres negras na televisão. A presença era rara e ocasional e, por isso mesmo, momento pelo qual eu sempre esperava muito ansiosamente. Uma única atriz em uma única novela, uma única dançarina negra em um elenco de muitas paquitas brancas. Essa coisa única e ocasional era um problema para mim, pois nas brincadeiras com as minhas primas a existência de apenas uma única impedia a brincadeira de ser muitas. Frequentemente essa presença única era motiva de briga. As poucas que existiam, pelo racismo da mídia, deixavam mais restrita nossa possibilidade de sonhar. Mas, apesar de na maior parte do tempo ser ocasional ver uma mulher preta na televisão, havia uma que estava lá sempre e que no fundo do meu coração sempre desejei que lá estivesse: Glória Maria.
Leu essa? Do luto à luta
Glória Maria foi uma espécie de tia mais velha com quem muitas vezes almocei, jantei, passei parte das tardes e noites. Também foi uma inspiração sobre a vida que eu queria viver: dona do meu próprio nariz (sempre quis ser dona do meu próprio nariz, minha mãe conta que por volta de seis anos briguei com ela uma vez e disse que não esperava a hora de ter 14 anos e ser adulta. Levei bem mais para alcançar minha independência, mas aí é papo para outro momento) trabalhando com o que amo, viajando por aí. Existem dois momentos da minha história com Glória especialmente importantes: a minha decisão de cursar jornalismo (que acabei não realizando) e o período sabático de merecido descanso da jornalista.
Quis muito ser jornalista porque a presença de Glória Maria fazia possível sonhar, durante toda a minha adolescência, com a carreira. Eu vivia no Rio Grande do Sul, e a representatividade dela era tão grande que me inspirava no que via, nas reportagens muito diferentes, na possibilidade de mergulhar em outras comunidades, em poder levar à casa das pessoas, como ela trazia para a minha, coisas que talvez jamais fossem possíveis para quem assistia no sofá.
Queria ser uma Glória Maria para outras meninas negras. Depois entendi, inclusive com algumas lições de Glória Maria, que eu não precisava ser ela e que, assim como ela, eu tinha direito a ser eu. Não foi por isso que desisti da ideia de ser jornalista, que se deu por razões outras, a maioria de cunho estrutural. Mas a forma com que Glória Maria se fazia presente na minha televisão, com sua pele retinta como a minha, sem que eu precisasse esperar que ela aparecesse ocasionalmente, me fazia sonhar com um país cheio de Glórias. E pelas portas por ela abertas, pela representatividade e pelas lições, esse país hoje é mais realidade do que sonho.
Pela cotidiana presença de Glória no meu dia a dia, fiquei absolutamente revoltada quando em 2010 ela se retirou para um período sabático. Não aceitava ficar sem ver aquela mulher negra que era espelho na minha televisão. Era uma coisa absolutamente impensável para mim não ter aquela presença que sempre tive. Foi uma surpresa que me desagradou mas que também me ensinou mais uma coisa sobe aquela mulher que admirava tanto: a gente precisa saber o momento de priorizar nossa própria vida para viver experiências únicas e transformadoras.
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Veja o que já enviamosGlória compartilhou muitas experiências únicas e transformadoras que os dois anos longe da telinha propiciaram para ela, inclusive a bonita experiência de ser mãe. Foi se conhecer, dedicar seu tempo para coisas que importavam para ela, descobriu que suas filhas já existiam e dedicou amor, carinho, educação a Laura e Maria, que, ainda tão jovens, me ajudaram a tirar o profundo pesar que invadiu meu coração quando soube da passagem de Glória no último 2 de fevereiro.
Sou filha de Yemanjá e apesar de não celebrar o 2 de fevereiro me encanto com as celebrações ao dia. Paro em frente à televisão e fico acompanhando os locais onde a rainha do mar é festejada. Fiz, como há alguns anos, o mesmo ritual: despertei cedo, reuni os mais bonitos desejos do meu coração às energias que envolvem os ritos do 2 de fevereiro, agradeci a minha vida e pelos bons encontros, preparei meu café da manhã e liguei a televisão para acompanhar as notícias da festa. Acabava um dos muitos telejornais que acompanho quando a notícia do falecimento de Glória foi anunciada e meu coração por alguns minutos ficou pequeno e revoltado. Porque a presença de Glória não seria mais cotidiana. Um sentimento muito parecido com o que experimentei quando soube que ela havia dado um tempo na carreira.
Essa tristeza revoltada só se acalmou quando vi Laura e Maria falarem sobre a passagem de sua mãe. Foram elas, as filhas de Glória, que me lembraram que a presença de pessoas indescritíveis e tão especiais não precisa ser física. Quando Maria disse para Laura “a mamãe está aqui” recuperei a sabedoria dos meus ancestrais, da minha religiosidade e dos pressupostos civilizatórios de matriz africana que fazem parte de mim: a morte é um renascer. Glória renasceu no dia 2 de fevereiro de 2023. Renasceu para estar aqui, com todos aqueles que admiraram seu trabalho, com quem com ela se emocionou, com pessoas como eu, que nela viram a possibilidade de sonhar e que por ela manterão seus sonhos vivos.
Seguiremos aqui Glória, que você esteja vivendo ótimas aventuras, conhecendo novos mundos, que você permaneça em honra e toda a Glória.