Representatividade em sala de aula

O famoso quadro “Capoeira”, de Johann Moritz Rugendas, pintado em 1835. Foto Reproducao

Livro da historiadora Ynaê Lopes dos Santos coloca África e Brasil afrodescendente no mapa do ensino do país

Por Gustavo Autran | ODS 8 • Publicada em 24 de julho de 2018 - 08:33 • Atualizada em 24 de julho de 2018 - 22:27

O famoso quadro “Capoeira”, de Johann Moritz Rugendas, pintado em 1835. Foto Reproducao
O famoso quadro "Capoeira", de Johann Moritz Rugendas, pintado em 1835. Foto Reproducao
O famoso quadro “Capoeira”, de Johann Moritz Rugendas, pintado em 1835. Foto Reproducao

Desde a época em que estudava na Escola Logos, em São Paulo, a professora Ynaê Lopes dos Santos já se incomodava com o silêncio em torno da África e da cultura afro-brasileira nas salas de aula. Depois que começou a lecionar, em 2001, seu desconforto com a desinformação sobre o continente só aumentou. Foi diante desse cenário que ela resolveu usar o seu conhecimento para ajudar a revolucionar o padrão da educação no Brasil. Doutora em História Social pela USP, e filha de militantes do movimento negro, Ynaê lançou, no fim de 2017, História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas Editora). O livro de conteúdo paradidático tem proposta ambiciosa e necessária: deslocar o foco eurocêntrico tradicional do ensino de História no Brasil e mostrar a importância da contribuição africana na formação da identidade nacional.

Capa do livro de Ynaê Lopes dos Santos . Reprodução

De acordo com dados do IBGE, 54% dos brasileiros se identificam como negros ou pardos, mas essa maioria não está representada nos livros didáticos ou nas discussões em classe. “É preciso tirar essas pessoas da invisibilidade, falar da história delas e de onde elas vêm. Tem que saber que África é essa para podermos formar cidadãos brasileiros”, defende Ynaê. Trata-se de um árduo trabalho de desconstrução. Por séculos o Ocidente difundiu a falsa ideia de que a África é uma unidade desprovida de diferenças. “Na África contemporânea são faladas mais de 2 mil línguas, existem diversas religiões e as diferenças físicas encontradas entre um queniano e um egípcio são tão grandes como as encontradas entre um português e um dinamarquês”, compara.

E no Brasil? Em 350 anos, desembarcaram aqui 5 milhões de escravos, numa estimativa conservadora. No final do século XIX, éramos o último país das Américas a usar esta mão de obra. Ainda hoje, todo esse contingente é tratado como uma massa amorfa e sem individualidade, que foi libertada por uma princesa branca. Figuras históricas como Tereza de Benguela — que liderou um quilombo no Mato Grosso, no século XVIII — nunca são mencionadas. “É como se não tivessem existido. O escravo precisa ser visto como um sujeito histórico, que se rebelava não apenas nos quilombos, mas no seu cotidiano”, resume a autora.

Num país em que a grande maioria da população carcerária ou que mora em favelas é negra ou parda, discutir esses temas com profundidade é a melhor forma de combater a discriminação racial.  “O aluno que amplia o seu olhar percebe que a lógica eurocêntrica não é a única narrativa possível. Essa pluralidade de pontos de vista ajuda a enfrentar preconceitos e promover a tolerância”, diz Ynaê.

Mas são muitos os desafios. Há quinze anos foi promulgada a Lei 10.639/03, que estabelece obrigatoriedade do ensino de História da África e da cultura afro-brasileira no currículo da educação básica. Isso não foi o suficiente para reverter a situação, porque ainda há muita resistência por parte das escolas, das famílias dos alunos, da bancada evangélica e até de alguns professores, que estão assoberbados trabalhando em condições precárias. “Uma das ideias é que os livros paradidáticos sirvam de ferramenta para o professor incluir esse conteúdo no currículo. Se você está falando sobre as origens do Cristianismo, por exemplo, porque não mencionar o Império Axum (originário do planalto Etíope, nordeste da África), que se converteu à religião?”, questiona.

O debate público promovido nas redes sociais e o ativismo identitário fomentam o interesse do leitor pelas tradições afro-brasileiras. “Sem dúvida nenhuma, há uma forte questão de representatividade para a população negra, mas não apenas ela, que faz com que muitos títulos e autores alcancem ótimas marcas. E esse leitor não está apenas interessado no resgate das tradições afro-brasileras, mas há um forte interesse sobre as expressões da afro-brasilidade atual, viva e em construção”, pondera a historiadora Cristina Warth, diretora da Pallas Editora. Outros autores que percebem esse nicho de mercado se debruçaram em projetos de livro semelhantes — como a historiadora Marina Mello e Souza, autora de África e Brasil Africano (Ática), vencedor do Prêmio Jabuti 2007, na categoria Melhor Livro Didático e Paradidático de Ensino Fundamental ou Médio.

O quadro “Negra Livre Rica”, do francês Jean-Baptiste Debret. Foto Reprodução

A maior resistência à aplicação da lei vem da bancada evangélica, responsável pelo projeto de escola sem partido, que tramita na Câmara. A polêmica gira em torno da crença de que certos temas, como o ensino de religiões de matriz africana, impõem determinados princípios religiosos nas escolas. Ynaê acredita que seu livro ajuda a promover a pluralidade na educação em um Estado laico. “Quero colocar a África no mapa da história, pensar com seriedade em temáticas apagadas e, com isso, permitir que tenhamos algum repertório sobre os africanos que ajudaram a construir o Brasil”, conclui a autora.

Gustavo Autran

Jornalista com passagem pelas redações de O Globo, Veja Rio, Jornal do Brasil, Isto É Gente e Folha de S. Paulo. Atuou em diversas áreas (música, livros, moda e comportamento) e desenvolveu um perfil multitarefas, com experiência em marketing digital, assessoria de comunicação e produção de conteúdo para mídias sociais. Foi editor do site do Ela e há três anos ingressou no mercado editorial, como Gerente de Comunicação da editora Intrínseca.

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