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Na Euro, o futebol se exibe como a última fronteira da colonização

Filhos, netos e bisnetos da diáspora, craques afro-descendentes brilham em várias seleções, mas nem o olimpo da bola vence o racismo e a xenofobia

ODS 10ODS 16ODS 8 • Publicada em 27 de junho de 2024 - 07:00 • Atualizada em 28 de junho de 2024 - 09:31

A cada quatro anos, a Europa, epicentro do planeta bola, promove sua competição de seleções. Acontece no verão, em estádios de sonho, construídos com recursos infinitos, dotados de toda a tecnologia, das instalações para atletas, técnicos e público, ao aparato das transmissões hollywoodianas. Do outro lado do muro da criminosa desigualdade econômica, o mundo, claro, se deixa hipnotizar por tanta opulência.

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Mas a zilionária Euro também oferece oportunidade preciosa para constatar como o futebol se transformou na derradeira fronteira da colonização. O numeroso elenco de craques afro-descendentes embrulhados nos impecáveis uniformes das seleções europeias é mais um produto do massacre imposto às terras saqueadas pelos invasores estrangeiros ao longo dos séculos.

Não há exemplo mais contundente do que a seleção da França, uma das favoritas ao título. Nada menos do que 14 de seus 26 jogadores são filhos (netos, bisnetos) de africanos vítimas da diáspora. Nasceram e cresceram em meio a guerras ou nos guetos onde o país tenta exilar os imigrantes. Até o talento virar o jogo e levá-los ao olimpo esportivo.

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Como Ousmane Dembelé, atacante do Paris Saint-Germain, filho de pai do Mali e mãe senegalesa-mauritana. Ou Eduardo Camavinga, volante do Real Madrid, que cresceu num campo de refugiados em Angola, depois de os pais fugirem da guerra no Congo. Ou N’Golo Kanté, volante do Al-Ittihad, que era catador de lixo com o pai malinês, pelas ruas de Paris em 1998, no primeiro título mundial da França, e líder do time no bi de 2018. Ou Dayotchanculle Upamecano, do Bayern de Munique, filho de pais da Guiné-Bissau (seu nome, aliás, homenageia o bisavô, rei numa vila da ilha de Jeta). Todos titulares na estreia, que terminou com vitória sobre a Áustria por 1 a 0.

Na pororoca de etnias, reluz a estrela de Kylian Mbappé. Um dos jogadores mais valorizados do mundo – na Europa, só o norueguês Haaland e o inglês (também afro-descendente) Bellingham, craque do time, se aproximam –, é filho de um camaronês e de uma argelina. Protagonista do time bicampeão do mundo, com precoces 20 anos, cresceu na comuna de Bondy, periferia de Paris, em meio à pobreza e ao racismo.

O alemão Jamal Musiala: filho de nigerianos é o novo craque da tradicional seleção tetracampeã do mundo e anfitriã da Euro. Foto Jurgen Fromme/DPPI/AFP
O alemão Jamal Musiala: filho de nigerianos é o novo craque da tradicional seleção tetracampeã do mundo e anfitriã da Euro. Foto Jurgen Fromme/DPPI/AFP

Está longe de ser privilégio francês. Ensina a escritora “senebrasileira” Fatou Ndiaye que a “afroEuro” escala nove craques na Bélgica (vários congoleses, num desfecho especialmente cruel, diante das barbaridades perpetradas no território africano desde Leopoldo II, o rei que mandava cortar braços de adultos e crianças como castigo pela pouca produtividade); oito na Suíça; sete na Inglaterra; cinco na Alemanha (entre eles, o astro emergente Jamal Musiala, de ascendência nigeriana); quatro na Holanda e em Portugal; em dois, em Itália, Espanha, Dinamarca e Áustria. Ao todo, 59 afro-descendentes.

Aqui, entra em campo a contradição que grita nas seleções europeias. A tal da “civilização” está há séculos usurpando riquezas alheias pelo mundo (o verbo no presente se explica porque, em pleno 2024, França, Reino Unido e EUA ainda controlam territórios estrangeiros) e impondo miséria a milhões de pessoas. Muitas delas migram para a Europa, toureando perigos mortais, em busca do mínimo de dignidade. Normalmente não encontram, pela indestrutível barreira do racismo, mas seus filhos nascem, crescem – e alguns viram estrelas futebolísticas, a reluzir nos times dos colonizadores.

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Não é de hoje. Em 1966, o moçambicano Eusébio liderou a metrópole Portugal ao inédito terceiro lugar na Copa disputada na Inglaterra. Agora, muitos afro-descendentes encaram o crescimento da intolerância em muitos países do continente, onde a extrema-direita avança na espiral de estupidez que inclui a ojeriza aos imigrantes.

Mbappé, aliás, tomou a iniciativa de se posicionar sobre o futuro político da França, numa entrevista coletiva em Düsseldorf, na Alemanha, onde está sendo jogada a Euro. “Estamos em um momento crucial da história do nosso país. Precisamos saber pôr as coisas em perspectiva e ter senso de prioridade”, ponderou, convocando seus jovens compatriotas a participar das eleições legislativas, nos próximos dois domingos. “A situação na França é mais importante do que esse jogo”, arrematou, referindo-se à estreia contra Áustria.

(Texto assinado por 160 atletas, publicado no jornal esportivo L’Equipe, também clama por mobilização geral contra a extrema-direita. Algo impensável para os alienados e individualistas esportistas brazucas. Fim da digressão.)

A patriótica atitude do camisa 10 lembra antecessores seus na seleção, que encararam a mesma intolerância. O time campeão em 1998, liderado pelo supercraque de ascendência argelina Zinedine Zidane, era chamado de “pouco francês” pelos conservadores. Ficou famosa a resposta do defensor (e futuro ativista) Lilian Thuram ao líder da extrema-direita Jean-Marie Le Pen, que reclamou não reconhecer a seleção “pelo excesso de jogadores negros”.

Não prestou – e veio a invertida histórica. “Claramente, ele não tem consciência de que existem franceses negros, brancos, pardos. Isso é muito sério”, atacou Thuram. “Quando entramos em campo, o fazemos como franceses. Todos nós. Nas vitórias, as pessoas nos festejaram como franceses, não como negros ou brancos. A seleção francesa está muito, muito orgulhosa de ser francesa. Assim, ‘Vive la France’, mas a verdadeira França, não a que ele deseja”. Golaço.

O inglês Saka: vítima recorrente do racismo até na mídia do seu país. Foto Adrian Dennis/AFP

A xenofobia faz dupla de ataque com o racismo. No último amistoso antes da Euro, a Inglaterra perdeu para a Islândia em Londres, zebra histórica. Um dos craques do English Team, o atacante Bukayo Saka (filho de nigeriano) entrou faltando 25 minutos e teve atuação discreta, sem influência no resultado – mas foi parar na capa de vários jornais e sites no dia seguinte. O “Star” ainda sapecou a manchete “Black ice”, gelo negro, merecedora de cartão vermelho sem direito a VAR. Na Euro passada, quando a Inglaterra perdeu a final nos pênaltis para a Itália, os vilões eleitos por torcida e imprensa foram Saka, Rashford e Sancho, todos negros, que desperdiçaram suas cobranças. Choveram ofensas racistas.

A intolerância, mesmo nas vitórias e títulos, não dá trégua. “Quando ganhamos sou alemão, quando perdemos sou árabe”, comenta o meia de origem turca Mesut Özil, campeão do mundo (e presente no 7 a 1). “Quando faço gols sou francês, quando jogo mal me dizem que sou árabe”, ecoa o centroavante Karim Benzema, outro filho de argelinos, melhor jogador do mundo em 2022. “Quando as coisas vão bem sou o atacante da Bélgica; quando não, sou o descendente de congoleses”, atesta o centroavante Romelu Lukaku, maior artilheiro da história do país.

Os sommeliers de nacionalidade são patéticos. Mbappé é francês como Catherine Deneuve ou Jean Paul Gaultier; Musiala, alemão como Angela Merkel ou Michael Schumacher; Saka, inglês como Paul McCartney ou o príncipe William; Lukaku, belga como Hergé (o criador do Tintim) ou Jean-Claude Van Damme. Esse é o jogo jogado.

Lamine Yamal (19) e Nico Williams, jovens atacantes da Espanha: destaques da seleção do país mais racista da Europa. Foto Andrzej Iwanczuk/NurPhoto/AFP

Mas nenhum desafio, nesta disputa terrível, será da magnitude do enfrentado pelos prodígios Nico Williams (21 anos, filho de ganeses, refugiados da guerra civil da Libéria) e Lamine Yamal (16 anos, os pais do Marrocos e da Guiné Equatorial). Espanhóis como Pedro Almodóvar, os dois, que atuam respectivamente por Athletic Bilbao e Barcelona, são as grandes esperanças do país mais racista do momento na Europa.

Seria irônico, não fosse trágico: a sociedade que passou a última temporada perseguindo incessantemente com ofensas bárbaras o negro brasileiro Vini Jr aposta em dois meninos pretos na disputa do título continental. Não hesitará em culpá-los, se a seleção ficar pelo caminho. Com qualquer resultado, quando a bola parar, tudo voltará ao velho normal – afinal, na terra dos colonizadores, o racismo e a xenofobia correm o campo inteiro.

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