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A solidão de Vinicius Jr no jogo bruto e eterno

Prodígio brasileiro do Real Madrid enfrenta o racismo na Espanha com altivez e firmeza. Mas o futebol faz corpo mole para combater a intolerância na intensidade necessária

ODS 10ODS 16 • Publicada em 26 de maio de 2023 - 00:07 • Atualizada em 28 de maio de 2023 - 13:34

Os adversários convencionais, que usam uniforme, desabam vencidos pelos dribles indomáveis de um prodígio da bola. Terríveis à vera são os oponentes que brotam, desde sempre, no caminho de Vinicius Jr, muitos deles jogando sujo, como os racistas dos estádios da Espanha. Na batalha contra a barbárie, o camisa 20 do Real Madrid lembra os centroavantes de times retrancados – enfrenta solitário a brutalidade. Ninguém aparece para ajudar.

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Protagonista, aos precoces 22 anos, do clube de futebol mais importante do mundo, o brasileiro é veterano no duelo com as mazelas humanas. A altivez e contundência com que toureia o racismo na Espanha vêm da sua origem, em São Gonçalo, cidade de 1,2 milhão de habitantes, na Região Metropolitana do Rio, massacrada por dramáticos problemas sociais.

Muitos meninos negros, contemporâneos do craque, perecem na violência endêmica no município, no estado, no país dos 50 mil assassinatos por ano. Todos, vivos e mortos, alvos da intolerância permanente de uma sociedade horrorosa (e sem moral para falar dos espanhóis). Ao superar o funil radicalmente apertado que leva ao olimpo futebolístico, Vinicius virou celebridade planetária. Mas o preconceito ignora conquistas, mesmo improváveis.

Ao longo da temporada europeia que termina agora, o jovem sofreu implacável perseguição dos racistas. Em janeiro, a barbárie atingiu outro patamar – um boneco negro, com a camisa 20 do Real (usada pelo brasileiro), foi pendurado pelo pescoço num viaduto de Madri, antes da partida contra o Atlético.

Manifestação em São Paulo ataca a liga espanhola e defende Vinicius Jr. Foto Ettore Chiereguini/Anadolu Agency/AFP
Manifestação em São Paulo ataca a liga espanhola e defende Vinicius Jr. Foto Ettore Chiereguini/Anadolu Agency/AFP

Pelas arquibancadas do país, as ofensas se multiplicaram em coros numerosos, turbinados pela impunidade e cevados por reações lenientes, flácidas, desinteressadas. Aqui, Vinicius Jr sempre jogou sozinho – a começar pelo próprio time que se beneficia do seu talento. Os também negros Rudiger (alemão), Tchouameni (francês), Camavinga (angolano), Militão e Rodrygo (brasileiros), óbvias vítimas de preconceito racial, e o muçulmano Benzema, que sofre com a intolerância religiosa, seguiram em campo. Assim como os consagrados Modric (croata), Kroos (alemão) e Courtois (belga), endossaram o cacoete futebolístico do show que tem de continuar, a qualquer custo.

O técnico Carlo Ancelotti repetiu a postura covarde. Atravessou a temporada passando pano para os urros criminosos – chegou a garantir que não havia racismo na Espanha! Somente no explosivo domingo de Valencia desceu do salto, permitindo-se declarações de protesto.

A direção do Real Madrid (de novo: o clube mais poderoso da Terra) escondeu-se em burocráticas notas de repúdio. La Liga, organizadora do campeonato milionário, fez pior: seu presidente, Javier Tebas, figura entre os titulares do time de apoiadores do Vox, partido espanhol de extrema-direita, e teve o descaramento de culpar a vítima nas redes sociais. Ou seja: um gigantesco “tenho nada com isso”.

Vinicius Jr botou a solidão no bolso, com a firmeza que exibe em campo desde os tempos das divisões de base, no Flamengo do seu coração. Ostentou letramento racial incomum entre os boleiros, ao não recuar um milímetro na atitude em campo e fora dele. Ainda bem – porque os adversários não vão parar de brotar.

O futebol convive sem dor com as mazelas mais terríveis. Para sedimentar seu poder, vende a ideia de um ambiente acima das leis, onde pode tudo, inclusive xingamentos misóginos, bandeiras xenófobas, todo tipo de intolerância. Aceita dinheiros das procedências mais nefastas, que bancam Copas como a do Catar, inflam clubes artificialmente – Paris Saint-Germain e Manchester City são os exemplos mais contundentes – ou compram espaço nobre em camisas tradicionais, casos de Barcelona, River Plate e o próprio Real Madrid.

Projetos bem-sucedidos de sportswashing, a lavagem pela exuberância esportiva, que trabalha pela imagem de cantos indefensáveis do mundo, como Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar. Cristiano Ronaldo, antecessor de Vinicius Jr no clube merengue, vive o outono de sua carreira no Al-Nassr, clube saudita que paga R$ 1 bi por ano ao português – e Messi deve trocar o PSG pela irrelevância zilionária do deserto.

Aboletados em montanhas de dinheiro, os dois maiores craques em atividade ignoram o massacre dos direitos humanos, a opressão contra mulheres, LGBTs, a ojeriza à democracia, o bloqueio de liberdades individuais. E o establishment do futebol reza pela mesma cartilha.

Vinicius Jr abala a estrutura boleira por características que nasceram com ele. Aqui, entra em campo palavra que amedronta muita gente: colorismo. Na perversidade do racismo, quanto mais negra a pele, pior. E o atacante do Real Madrid é o primeiro preto retinto a ocupar o trono informal de melhor jogador do país pentacampeão do mundo desde Pelé (depois do Rei, vieram cronologicamente os brancos Rivellino e Zico; os negros claros Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho; o branco Kaká; e o autodescoberto negro Neymar).

“O colorismo se trata de fenômeno enraizado na história, inseparável, portanto, das relações de dominação que constituem a sociedade contemporânea”, ensina Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos. “Serviu e ainda serve como dispositivo político de imposição de hierarquias, divisão social e sofrimento psíquico”. Os racistas, assim, aumentam o calibre com os retintos – e tudo no continente que inventou o racismo como pretexto para a violência inominável da colonização.

Boneco com a camisa de Vinicius Jr pendurado pelo pescoço em ponte de Madrid: barbárie. Reprodução

E Vinicius Jr vai sozinho nesse jogo bruto. As manifestações de solidariedade, camisas temáticas, movimentos de entidades e patrocinadores são tão poéticas como tardias – e inúteis, pelo sofrimento vivido. Na hora da batalha, o jovem atacante sempre esteve só.

No campeonato da omissão e da leniência, o papel mais ridículo fica para a CBF. Cada vez mais parecida com o que sempre foi, após uma aragem progressista no início da gestão do baiano Ednaldo Rodrigues como presidente, a entidade enviará o time pentacampeão para amistoso dia 17, exatamente na Espanha. O jogo será no Camp Nou, estádio do Barcelona, cujos torcedores comemoraram o título nacional da temporada aos gritos de “Morra, Vinicius”.

A seleção do país da segunda maior população negra do mundo (atrás apenas da Nigéria) vai se exibir em um dos palcos do racismo futebolístico explícito – e contra uma seleção africana, a Guiné! Prometem os cartolas brasileiros que a partida será “um manifesto antirracista”. Os jogadores entrarão em campo com uma faixa, possivelmente haverá referências nos uniformes, talvez todos se ajoelhem com os punhos erguidos… e só.

Ainda tiveram a coragem de perguntar a Vinicius Jr – sim, a vítima! – se tinha algum problema para ele a realização do jogo. Um jovem de 22 anos, suportando toda a perseguição, tem que decidir se a seleção brasileira entra ou não em campo. Bizarrice total.

Por tudo isso, o amistoso será um clássico do deboche. Como defendeu o jornalista Martin Fernandez, a CBF deveria mandar esse jogo no Maracanã, para o principal jogador do país ser abraçado por seu povo. Vinicius Jr reencontraria muitos rubro-negros como ele e seria aclamado por todos os brasileiros, como ídolo nacional em que se transformou. No bojo, Ednaldo Rodrigues emprestaria um pouco de coerência a quem começou seu mandarinato aparentando tanta preocupação com o racismo.

Mas não. Por enquanto, Vinicius Jr conta somente com a própria coragem e solidez de atitude no enfrentamento aos intolerantes. O resto do planeta futebol se refugia num preguiçoso incômodo blasé. Passada a tormenta dos crimes de Valencia, tenderá a sua constrangedora normalidade.

E segue (lamentável) o jogo.

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