Dez anos depois da PEC das Domésticas, trabalho infantil segue invisível

Difícil de fiscalizar, exploração de crianças ainda é realidade em cidades do interior do país, especialmente no Nordeste

Por Maira Soares | Inclusão e DiversidadeODS 8 • Publicada em 12 de junho de 2023 - 08:08 • Atualizada em 4 de março de 2024 - 17:31

Maria Isabel, Luíza e Milca, símbolos da luta contra o trabalho infantil doméstico. Colagem Maíra Soares

Cuidar de uma criança de quatro anos, comprar pão, fazer o café da manhã, varrer, lavar, esfregar… Essa era a rotina da pequena Maria Isabel Castro Costa quando tinha apenas oito anos de idade e vivia em uma residência com desconhecidos em São Luís, capital do Maranhão. Estudar? Brincar? Ter uma vida normal de criança? “Bem, isso não era possível”, responde Maria Isabel, que hoje tem 63 anos e é a diretora da Secretaria da Mulher na Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e diretora de finanças no Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Maranhão (Sindoméstico/MA).

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Vinda da região central do Maranhão, mais precisamente do Quilombo Monte Cristo, Maria Isabel era a caçula de nove irmãos. Na época, explica, era costume que as donas das fazendas buscassem crianças com o objetivo de “abrigá-las” em suas residências. Foi o que aconteceu com Maria Isabel. Com a morte de sua mãe, foi levada para uma propriedade na capital aos seis anos de idade. “Ela [a proprietária do casarão] disse o seguinte: ‘Olha, se essa criança que tu tem na barriga for mulher, vai ser minha’”, conta Maria Isabel sobre como sua mãe a prometeu para a “madrinha”. A exploração de menores das comunidades pobres em atividades domésticas e outras tarefas nas terras, travestida de “ajuda” e “acolhimento” era uma prática da época que, infelizmente, se perpetua até hoje.

Segundo dados da pesquisa “O trabalho infantil doméstico no Brasil: análises estatísticas”, do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), na região Nordeste, as taxas de trabalho infantil doméstico chegam a 31,6%. A Bahia tem as taxas mais altas, seguida do Ceará, Maranhão e Pernambuco. Os dados são de 2019 e mostram uma pequena queda em relação a 2016, quando o índice chegou a 34,5%. Números que não surpreendem Maria Isabel:

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“Ao invés de contratarem uma pessoa adulta para cuidar [das crianças e idosos], eles preferem ficar naquela situação de conservadorismo do período colonial; de ver aquela criancinha que fica debaixo da mesa do patrão comendo as migalhas que caíam”, explica.

 

Maria Isabel foi deixada em São Luís aos oito anos em uma casa com dois adolescentes e duas crianças de quatro anos. Ela ficou na residência até os 13 anos. Enquanto isso, o irmão, Clodomir Castro, a procurava pela cidade na tentativa de encontrá-la. Somente depois de cinco anos é que Clodomir a reencontraria quando a avistou pela janela da casa para onde foi levada.

Durante esse tempo ela não estudou, sofreu violência física, estafa pelo trabalho pesado e perdeu a infância e a convivência familiar, em que as consequências da exploração repercutiram também na vida profissional. “A minha mentalidade ainda era de pouca coisa. Acostumada a não receber nada em troca do meu trabalho, em receber só coisas usadas, então eu achava que ela [patroa] não ia me dar o salário que eu ia pedir”, relata.

No Maranhão, 165 dos 217 municípios possuem ações de enfrentamento e erradicação do trabalho infantil. No Brasil, de 2012 a 2019, foram registradas 54.684 ocorrências de trabalho infantil pelo Disque 100, um dos canais para denúncias.

Bruna Ribeiro, gestora do projeto Criança Livre de Trabalho Infantil, explica que o trabalho infantil é aquele realizado por pessoas abaixo da idade permitida pela legislação de cada país. No Brasil, entre 14 e 16 anos é permitido o trabalho na condição de aprendiz. Entre os 16 e 17 anos tem-se permissão parcial de trabalho. “São muitas as causas do trabalho infantil, mas a gente pode destacar a pobreza, a desigualdade social e o racismo estrutural. Além de uma cultura de naturalização”.

Luana Junqueira Dias Myrrha, professora doutora do departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), coordenou a pesquisa sobre o perfil dos empregadores de trabalhadoras domésticas no país. O estudo, realizado em 2020 com 1.696 pessoas, revelou 82,7% de mulheres contratantes, de 30 a 59 anos (74,5%), sem filhos (63%), brancas (75,9%), com ensino superior completo (95,9%) e que ganham acima de dez salários-mínimos (61,9%).

Dados do terceiro trimestre de 2022 da Pnad Contínua salientam que 91% das mulheres representavam os ocupados nos serviços domésticos e ganhavam 20% a menos do que os homens. Ainda segundo os dados, 75,7% das mulheres estão como informais na área.

Luiza Batista: “Quando eu pedi água, ela disse: ‘beba daí do chuveiro, da privada. Você não vai sair daí hoje, só vai sair de noite para dormir’”. Foto Fenatrad
Luiza Batista: “Quando eu pedi água, ela disse: ‘beba daí do chuveiro, da privada. Você não vai sair daí hoje, só vai sair de noite para dormir’”. Foto Fenatrad

Luíza Batista Pereira, 66, atuante como coordenadora-geral da Fenatrad, perdeu o pai, um trabalhador rural, quando tinha seis anos. Foi um período difícil: a mãe ficou desprotegida e enfrentou a tuberculose, que a impediu de trabalhar. A família ficou quase duas semanas morando nas ruas. Luíza foi para a residência de uma senhora aos nove anos, quando foi indicada para “brincar com a filha de cinco anos”. Ao chegar lá, tinha que passar cera na casa inteira, limpar o jardim, molhar as plantas e cuidar de outra criança. Foi com a ajuda da cozinheira da casa que a mãe de Luíza soube das agressões e a levou embora do local.

A pior agressão aconteceu quando Luíza foi mordida no braço pela criança que cuidava. Ela acabou dando um tapa de maneira impensada na menina, mas a dona da casa pegou o fio do ferro elétrico, deu uma surra que a deixou toda marcada e a trancou no banheiro o dia inteiro sem se alimentar. “Quando eu pedi água, ela disse: ‘beba daí do chuveiro, da privada. Você não vai sair daí hoje, só vai sair de noite para dormir’”. A mãe de Luíza, ao descobrir as agressões da cozinheira da casa, a levou embora.

Somente aos 12 anos, trabalhando como empregada doméstica em outra casa, é que Luíza Batista foi incentivada a estudar. Só conseguiu o primeiro emprego fora do trabalho doméstico como cobradora de ônibus aos 21 anos. Em 2019, o estado de Pernambuco tinha 173 de 185 municípios que apresentavam ações de enfrentamento e erradicação do trabalho infantil.

Milca Martins Evangelista, 53, presidente do Sindoméstico Bahia e diretora da Fenatrad, trabalha desde os sete anos. Com a mãe viúva, oito filhos e a esperança de sair de Minas Gerais para buscar oportunidades melhores no Nordeste, Milca saiu do interior para a capital Salvador, na Bahia. Ela não vivenciou nada do que tinha sido prometido para Maria Aparecida, sua mãe, lavadeira em uma fazenda no interior. “A primeira violência é essa forma perversa, criminosa, de tirar essa criança do seio da sua família”.

Milca ficou dos sete aos 12 anos em uma residência e perdeu o contato com os familiares. As únicas notícias que Maria Aparecida tinha de Milca eram informadas pela patroa quando visitava a fazenda. A desculpa era sempre a mesma: Milca estava bem e estudando.

Mas a realidade era outra. Ela cuidava de duas crianças, dormia no chão, nunca se sentava à mesa, não tinha direito de comer livremente, sofria maus-tratos físicos e violência psicológica. Os abusos sexuais começaram aos 11 anos cometidos pelo enteado da dona da residência, de 16 anos à época, e pelo patrão. “Até hoje eu carrego essas dores, que não é mais no corpo, é na alma”, relembra Milca ao contar sua história.

Milca conseguiu fugir e foi acolhida por um policial que a encontrou na rodoviária após ela ter rondado as ruas por muito tempo, se escondendo em bueiros de toda mulher branca que via com medo de ser levada de volta e catando lixo nas ruas. Ficou por seis meses na residência e recebeu incentivo para conseguir lembrar de sua história e voltar para a casa da mãe. Após encontrar sua família novamente, ficou com a mãe dos 13 aos 16 anos. Milca ainda é trabalhadora doméstica.

Milca só conheceu seus direitos quando entrou no sindicato, com o incentivo de Creuza Maria Oliveira, presidente de honra na Fenatrad. Só aprendeu a ler e a escrever após ter o apoio sindical. Ela defende que é preciso alterar a expressão trabalho infantil para trabalho análogo à escravidão, retratando a criminalidade da exploração de crianças e adolescentes. Destaca que a pandemia valorizou a vida, mas isso não se aplica às mulheres negras e pobres.

“Quando chega a pandemia, quem foi a primeira vítima da Covid-19? Foi uma mulher negra, trabalhadora doméstica”. Se refere a Cleonice Gonçalves, infectada pela patroa que tinha retornado de uma viagem. “O preconceito, o racismo perante essa criança, perante a juventude, perante a gente em fase adulta é questão de classe, raça e gênero”, afirma Milca.

Na Bahia, 323 de 417 municípios possuem ações de enfrentamento e erradicação do trabalho infantil. “A gente tem um cenário em que antes da pandemia já era um grupo que vivenciava condições laborais ruins: alta informalidade, geralmente jornadas de trabalho prolongadas, baixos salários, baixa proteção social e muitas vezes escravizadas e também exploradas, até mesmo sexualmente”, destaca a pesquisadora Luana Myrrha.

PEC das Domésticas

Em 1972, a Lei n° 5.859 garantiria o direito à Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), mas ainda não dava espaço para outros benefícios trabalhistas. Somente em 2013, com a conhecida “PEC das Domésticas”, por intermédio da promulgação da Emenda 72, é que houve a ampliação dos direitos das trabalhadoras, como auxílio-doença e salário-maternidade.

Os casos de Raiana Ribeiro, Mirtes Renata, Madalena Gordiano e de mulheres resgatadas de trabalhos análogos à escravidão confirmam o que Luíza Batista afirma: “Hoje muitas trabalhadoras domésticas que estão sendo resgatadas, são poucas que têm menos de 45 anos. A maioria sempre tem acima dos 50, 55, 60, 65 porque são aquelas crianças que vieram das cidades do interior com essas promessas de estudar, trabalhar e fazer as tarefinhas”.

Para a professora adjunta no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Carla Cecília Serrão Silva, o governo federal é signatário de acordos internacionais que tentam erradicar o trabalho infantil e suas piores formas de exploração, no qual o trabalho doméstico se encaixa. Um dos fatores que contribuem para a permanência no trabalho infantil, segundo Carla, é o racismo.

A pesquisadora destaca que os órgãos municipais precisam ir além de apenas ter uma equipe de enfrentamento ao trabalho infantil. “É necessário também uma desconstrução das subjetividades que estão carregadas de racismo, de conservadorismo, de concepções de gênero muito atrasadas que reforçam e naturalizam esse lugar para meninas negras e para mulheres negras”, salienta.

As trabalhadoras domésticas têm um perfil específico: são mulheres, negras e pobres. Dados da Pnad Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que entre o quarto trimestre de 2019 e de 2021, o número de ocupados no Brasil passou de 95,5 para 95,7 milhões. Nesse período, a população ocupada em trabalhos domésticos diminuiu de 6,2 para 5,7 milhões. A queda na estatística pode ter sido ocasionada pela Covid-19, que afetou os empregos e a renda das trabalhadoras no país.

As mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico, sendo 65% negras. Houve uma redução do número de trabalhadoras com carteira assinada. Em 2019, havia 27% de trabalhadoras com carteira assinada. Em 2021, o número diminuiu para 24%. Já a idade média das trabalhadoras domésticas é de 43 anos, variando entre 30 e 59 anos. A renda mensal nacional caiu de R$ 1.016 para R$ 930, com quedas em todas as regiões. O Nordeste saiu de R$ 670 para R$ 615.

Invisibilidade do trabalho doméstico

 Fiscalizar o trabalho infantil torna-se difícil por causa dos espaços privados no qual são confinadas as crianças e adolescentes. “A invisibilidade é por natureza uma característica que persegue o trabalho doméstico. E quando se trata do trabalho infantil doméstico, ele se torna ainda mais invisível porque ele é encoberto por um manto, que eu chamo de ‘manto da ajuda’”, explica Carla Serrão.

Segundo Carla, esse ‘manto de ajuda’ faz com que as famílias pobres entreguem seus filhos para que sejam levadas para as capitais em busca de comida, estudo e oportunidade. Mas a Covid-19 piorou os índices de pobreza, insegurança alimentar e condições precárias de moradia e renda.

Em 2021, 44,7% das crianças viviam em situação de pobreza (com renda mensal de R$ 467,67) e 12,7% em situação de extrema pobreza (com renda mensal de R$ 161,56). No meio rural, essa taxa sobe para 69,7% e as crianças negras apresentam uma taxa de quase 68% maior que a de crianças brancas; nos casos de extrema pobreza, o percentual sobe para 98%.

No Nordeste, com exceção do Ceará, mais de 60% das crianças são classificadas como pobres. Esses são dados apontados pelos Laboratório de Desigualdades, Pobreza e Mercado de Trabalho da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

A falta de estudo é uma das implicações do trabalho infantil doméstico. Maria Isabel, Luíza e Milca informaram que só estudaram quando atingiram a idade adulta. Todas elas citaram que conseguiram concluir os estudos na educação básica por intermédio do Programa Trabalho Doméstico Cidadão (TDC).

Esse programa federal do governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com os sindicatos de trabalhadoras domésticas e apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Desenvolvido entre 2006 e 2007, o objetivo era qualificar social e profissionalmente as trabalhadoras domésticas. O programa continha o módulo de elevação de escolaridade, qualificação profissional, social e trabalhista. Se beneficiaram da primeira fase mais de 300 trabalhadoras dos estados da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo.

Pensando em soluções, a pesquisadora Carla Serrão afirma que o Governo Federal precisa ter estratégias de curto, médio e longo prazo. É importante resgatar crianças de ambientes privados exploratórios e entregá-las às suas famílias, incluir pautas relacionadas ao tema no ambiente escolar para além das datas de conscientização e o investimento na melhoria da qualidade de vida populacional.

Maira Soares

Formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Imperatriz. Tem experiência com produção jornalística, comunicação interna, Assessoria de Comunicação e Marketing.

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