A terra seca e de sol escaldante da qual Luiz Gonzaga precisou partir em Asa Branca, hoje, é chamada de potência energética do Brasil. De acordo com a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), o Nordeste responde por mais de 80% da energia eólica e solar produzida no país, e tem possibilidades para ampliar a geração e os ganhos com essas fontes de energia na próxima década.
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“O futuro começa nesta terra que sempre foi tida como berço da escassez, da fome, da miséria. Agora, já começa a se reverter a situação, esse sol que foi tão mal falado anteriormente, sol que queimava e destruía, agora produz um produto nobre que é energia”, afirma Sebastião Alves, coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serta (Serviço de Tecnologia Alternativa), organização que, desde 1989, atuando na formação de pessoas e na promoção do desenvolvimento sustentável com foco no campo.
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Contudo, em 2022, usinas de energia solar desmataram mais de 3 mil hectares da caatinga, segundo levantamento realizado pelo Mapbiomas. Além do problema da derrubada de vegetação nativa, herbicidas são sistematicamente utilizados para manter as plantas fora das placas solares, explica Genival Barros, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Práticas Agroecológicas (Neppas), da unidade Serra Talhada.
Uma alternativa para a produção de energia solar de forma mais sustentável é a utilização do sistema agrofotovoltaico, ou agrovoltaico, modelo desenvolvido por pesquisadores alemães que combina agricultura com painéis fotovoltaicos. Na Alemanha, e em outros países europeus, o modelo já é utilizado, mas no Brasil ainda é muito pouco conhecido. O sistema pode contribuir para a segurança hídrica, produção de alimentos e distribuição de renda.
Injustiça energética
Segundo dados atualizados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), os estados do Sudeste e Sul lideram as quatro primeiras posições do ranking de geração solar distribuída. Produção descentralizada é a energia gerada e consumida próxima ao local de consumo, em casa ou no terreno do pequeno produtor. Por outro lado, na estatística da entidade sobre geração centralizada de energia, o nordeste possui a maior potência instalada.
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Veja o que já enviamos“A geração distribuída ainda é muito destinada a uma classe da sociedade que tem condições financeiras”, afirma Cássio Cardoso, engenheiro elétrico e assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O pesquisador também relata que a energia centralizada provocam impactos sociais e ambientais “desde o arrendamento das terras com contratos abusivos entre as empresas e as populações, e a disputa entre a energia solar e a produção de alimentos no campo”.
A energia centralizada produzida no Nordeste entra no mercado livre de energia e é comprada por grandes consumidores. “Esses compradores que, na maioria das vezes, estão no Sul e Sudeste, pagam um preço muito mais barato do que pequenos consumidores para o mercado regular de energia”, explica Cássio Cardoso.
O professor Sebastião Alves, que, desde a juventude, lutava pela implantação de energia solar e eólica na região, viu grandes empresas, a maior parte estrangeira, instalarem latifúndios de placas fotovoltaicas na caatinga nordestina. “Imaginava que cada casa de agricultor do semiárido pudesse ter a plaquinha solar independente, gerando a própria energia. E, o resto que sobrasse, seria injetado na rede da distribuidora; não precisaríamos de concentrar a energia solar”, conta o professor.
Sistema de esperança
Localizado no sertão pernambucano, o município de Ibimirim possui 26.593 habitantes, segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A cidade fica a 334,4 km da capital pernambucana, Recife, e da sua população, 55,26% vive em zona urbana, enquanto 44,74% vive em zona rural. As principais atividades econômicas estão concentradas na administração pública, na agropecuária, no setor de serviços e na indústria.
O coordenador de Inovação e Pesquisa Tecnológica do Serta é um dos responsáveis pela execução de um projeto-piloto do sistema agrofotovoltaico instalado na unidade de Ibimirim. A experiência mostra que é possível produzir energia e alimento sem prejudicar o bioma Caatinga, que sofre com o aumento das taxas de desmatamento.
O Serta incorporou as placas fotovoltaicas ao um sistema de aquaponia, formando assim o modelo agrofotovoltaico. “Percebemos que era possível criar sistemas que pudessem complementar outras tecnologias”, relata o professor Sebastião Alves. Outra preocupação do Serviço de Tecnologia Alternativa é utilizar conhecimentos e modelos já construídos, mas adaptando-os para o semiárido.
No modelo instalado no Serta, a produção de energia ocorre na parte de cima, com placas fotovoltaicas instaladas a aproximadamente três metros do solo; no meio, há o cultivo de hortaliças utilizando aquaponia; e, embaixo, a criação de galinhas e peixes. O protótipo também conta com uma composteira e calhas que permitem captar água da chuva.
A aquaponia é um tipo de tecnologia que integra o cultivo orgânico de plantas com a criação de organismos aquáticos, como peixes e camarões. A água residual dos peixes possui vários nutrientes necessários para as plantas. Sendo assim, o sistema aquapônico reaproveita essa água para as hortaliças através de uma bomba que faz a água circular. “Depois que passa pelas plantas, a água volta filtrada para os peixes”, explica Sebastião Alves.
A energia gerada pelas placas é responsável por fazer a bomba funcionar. Dentro do sistema, tudo é aproveitado, como o espaço abaixo da plantação, onde costuma-se criar as galinhas. Estas podem ser alimentadas com as hortaliças cultivadas. Já seus excrementos também são utilizados, sendo destinados para adubar as plantas.
Outra iniciativa de modelo agrofotovoltaico no sertão pernambucano encontra-se na cidade de Itacuruba, o projeto foi viabilizado por meio da parceria do CCBA (Centro Cultural Brasil Alemanha) com a ONG alemã Atmosfair. As placas fotovoltaicas foram instaladas na Aldeia Serrote do Campos, onde vive a comunidade indígena Pankará.
A energia gerada no mini parque agrofotovoltaico de 400 m² é utilizada para bombear a água captada no lago de Itaparica e abastecer casas, rebanhos e irrigar as plantações. Os painéis fotovoltaicos também têm calhas que permitem o armazenamento da água das chuvas. Antes dos painéis fotovoltaicos, a aldeia gastava mensalmente em média R$ 3.000 com energia. Agora a conta com os custos de manutenção zerou nos últimos meses.
Diferente do sistema agrofotovoltaico instalado no Serta, o de Itacuruba não faz uso da técnica de aquaponia. O professor Genival Barros é responsável pela pesquisa sobre a produção de alimentos embaixo das placas. Ele afirma que é possível cultivar mesmo em uma área igual onde as placas foram instaladas, pois Itacuruba é uma região com solos muito rasos e de caatinga baixa e rala.
A primeira fase da pesquisa de Genival Barros acabou há cerca de um ano. A cultura plantada inicialmente e organicamente foi a do melão, por ter uma importância para a região. Os resultados foram animadores.
O pesquisador deseja começar a segunda fase da pesquisa, mas isso ainda não foi possível pela falta de recursos. No entanto, os indígenas continuam plantando hortaliças embaixo das placas. “Essa área ela virou uma unidade de observação e demonstração; têm tanques de piscicultura, hidroponia, composteira e um pomar”, explica o pesquisador.
Energia e alimento para o semiárido
Segundo o professor Genival Barros, não é necessário instalar o sistema agrofotovoltaico em grandes áreas contínuas, porque esse modelo pressiona a mata. O ideal é fazer “corredores”. O modelo do Serta, por exemplo, foi instalado numa pequena área de 24 m², que dispõe de 10 placas fotovoltaicas.
Apesar do espaço reduzido, o sistema teve um rendimento anual de aproximadamente R$ 10 mil, a partir da produção de 130 kg de peixe (R$ 2,6 mil), 750 ovos de galinha (R$ 365), 810 unidades de vegetais (R$ 1,6 mil), 200 mudas de plantas nativas (R$ 3 mil), além de R$ 2,4 mil anual com a produção de 4.8 mil KWh das placas fotovoltaicas. Além disso, ele pode aumentar até 70% o cultivo de hortícolas e demanda menor quantidade de água, a depender do ambiente e da cultura agrícola.
O investimento da implantação do protótipo foi de, em média, R$ 20 mil, segundo dados da pesquisa divulgada pelo Instituto Agronômico de Pernambuco, que também é um dos parceiros do projeto.
Genival Barros acredita na importância de expandir a energia solar, desde que de forma sustentável. E que o sistema agrofotovoltaico ajuda a minimizar os impactos das mudanças climáticas no semiárido, além de favorecer a produção de alimentos e a distribuição de renda.
A luta da juventude de Sebastião Alves por energia solar continua: aos 63 anos, ele ainda defende os sistemas solares independentes e acredita no modelo agrofotovoltaico. “Eu acho que esses sistemas pequenos resolvem grandes problemas, porque reduzem a fome”, afirma. E o professor, nascido no Rio Grande do Norte e de “coração caatingueiro”, como ele mesmo se define, enxerga a potência do semiárido. “É rico, belo e tem muitas oportunidades a oferecer. basta que a gente se envolva com o próprio bioma”.
*As reportagens da série ‘Futuro renovável começa no Semiárido’ foram produzidas com o financiamento do edital Nordeste Potência junto com o Instituto ClimaInfo