Vendo o meu voto

Preço de ocasião: R$ 508 bilhões e o Brasil no século XXI

Por Agostinho Vieira | ODS 6 • Publicada em 9 de outubro de 2015 - 20:13 • Atualizada em 2 de novembro de 2015 - 15:52

A falta de saneamento no Brasil continua sendo a nossa maior vergonha. Um enorme abacaxi que, até agora, nem petralhas e nem coxinhas foram capazes de descascar
A falta de saneamento no Brasil continua sendo a nossa maior vergonha. Um enorme abacaxi que, até agora, nem petralhas e nem coxinhas foram capazes de descascar
A falta de saneamento no Brasil continua sendo a nossa maior vergonha. Um enorme abacaxi que, até agora, nem petralhas e nem coxinhas foram capazes de descascar

Está aberta a temporada de negociação entre os candidatos em busca de apoio no segundo turno. O nome dos eventos varia segundo os interlocutores. Pode ser uma conversa de alto nível, um acordo programático ou simples negociata. Como não procuro mais uma ideologia pra viver e nem acredito que a moralidade será instaurada, defendo que nos locupletemos todos. Portanto, estou vendendo o meu voto.

Foi uma decisão difícil, confesso. Tenho muito carinho por ele. Demorei anos para conseguir votar pela primeira vez e sempre procurei fazer isso com cuidado. Pesquisando, me informando. Jamais deixei uma cédula ou urna eletrônica em branco. É um voto pobre, mas é limpinho. Trata-se de uma relação afetiva que tenho com um bem muito precioso. Por isso decidi cobrar caro.
Não adianta me oferecer a independência do Banco Central. Isso não me comove. O ensino em horário integral nas escolas é importante, mas já está previsto no Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado recentemente pelo Congresso. Não vou trocar o meu voto por algo que já existe. O fim da reeleição é polêmico e os benefícios não são tão claros. Além disso, teria que negociar com centenas de deputados e senadores. Melhor esquecer.

O desenvolvimento sustentável seria um preço justo, sem dúvida nenhuma. Mas precisaria detalhar nas linhas finas do contrato de venda o que se entende por desenvolvimento e por sustentável. Complicado demais. Escolhi algo bem mais simples, claro e alcançável. O meu voto vai custar R$ 508 bilhões. Esse é o preço da universalização do saneamento básico no Brasil.
Só ontem me dei conta de que, muito provavelmente, vou morrer antes de ver o país resolver um problema que as nações desenvolvidas superaram no século XIX. Daí o meu desespero. A Lei do Saneamento, aprovada em 2007, depois de anos de gaveta, prevê que todo o esgoto nacional seja coletado e tratado até 2033. O mesmo vale para o fornecimento de água limpa e para o recolhimento e destinação adequada do lixo urbano. Hoje, o investimento do governo gira em torno de RS 8 bilhões por ano. Nesse ritmo, a meta só será alcançada depois de 2050.

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Os mais otimistas podem lembrar que a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita pelo IBGE, mostrou que a cobertura de esgoto no Brasil é de 63,5%. Não é ruim, certo? Errado. Esse índice seria razoável se fosse verdadeiro, mas não é. O IBGE faz pesquisa. Se um morador da Barra da Tijuca for perguntado se tem esgoto em casa, ele dirá que sim. Mas a resposta é não. Depois da descarga, grande parte do cocô vai parar nas lagoas da região. Isso não é saneamento.

O dado que mais se aproxima da realidade é o do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Por ele, estamos coletando 48,3% do esgoto e dando algum tipo de tratamento para 38,7%. Já a água tratada chega a 82,7%. Mesmo assim, ele não é 100% confiável. Pois não considera muitas áreas remotas e favelas. Ou seja, a realidade é ainda mais feia e malcheirosa do que imaginamos.

Mas o pior não é isso. A formação do cérebro de uma pessoa se dá até os cinco anos de idade. Doenças causadas pela falta de saneamento, como tifo, cólera e hepatite A interferem na absorção de nutrientes. As diarreias frequentes nessa fase da vida atrapalham o desenvolvimento e comprometem para sempre o quociente intelectual (QI). Ou seja, estamos roubando das crianças, especialmente das mais pobres, suas perspectivas de futuro. Ela já entra em campo perdendo de três a zero.

Se o saneamento só for universalizado depois de 2050, serão mais duas ou três gerações prejudicadas. Garantir que a educação receba 10% do orçamento é importante, assim como é fundamental ter professores bem pagos e currículos adequados, mas estamos adiando a solução de uma questão ainda mais básica. Nada justifica o descaso histórico que temos tido com este tema, e que se repetiu na eleição.

Essa é a minha oferta. Vendo o meu voto para qualquer candidato a presidente que garanta acelerar o fim desta vergonha. Sei que não será possível resolver o problema em quatro anos. Mas quem sabe até 2022, aniversário da Independência? Não vale argumentar que é caro. Os retornos sobre este investimento no mercado imobiliário, no turismo, na educação, no meio ambiente e, principalmente, na saúde estão fartamente documentados. Em tempo: as propostas devem ser feitas por escrito

*Artigo publicado, originalmente, no jornal O Globo, em outubro de 2014

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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