Universitários indígenas traduzem para kaingang HQ sobre preservação da água

Alunos de Educação do Campo da Universidade Federal da Fronteira Sul produzem material pedagógico escasso em sua língua

Por Lauro Neto | ODS 4ODS 6 • Publicada em 11 de julho de 2019 - 08:00 • Atualizada em 11 de julho de 2019 - 14:35

Professor Rogério Antonio com alunos de escola indígena: tradutor e primeiro de sua tribo a frequentar universidade (Foto: Divulgação)
Professor Rogério Kagynh Antonio com alunos de escola indígena: tradutor do livro para kaingang e da primeira geração de sua família a frequentar universidade (Foto: Divulgação)

Conta um dos mitos de origem do povo kaingang que “em tempos idos, houve uma grande inundação que submergiu toda a terra habitada por nossos antepassados”. Quando as águas secaram depois do dilúvio, os indígenas se estabeleceram nas imediações da serra. Desde o primeiro contato desta etnia com os colonizadores portugueses, no século XVI, muitas águas rolaram. Mas foram a seca e a estiagem que atingem o Rio Grande do Sul em pleno século XXI o ponto de partida para professores da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) escreverem uma história em quadrinhos (HQ) sobre a preservação dos recursos hídricos. O livro foi traduzido para kaingang por indígenas que fazem a Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) e distribuído para escolas indígenas de mais de 20 municípios.

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Nada mais justo do que preservar não apenas a água, mas também a língua do terceiro maior povo indígena do Brasil, de acordo com o Censo de 2010. Dados mais recentes, do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi-2014), estimaram em mais de 45 mil a população de kaingangs nos três estados do Sul e em São Paulo. Na LEDOC, mais de 80% dos 127 alunos são indígenas. Seis deles participaram do trabalho de tradução do livro “Cuidar da água: responsabilidade de todos” durante um semestre do curso.

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Rogerio Kagynh Antonio foi um dos tradutores. Os outros foram Lenice Farias, Marizalda da Rosa, Daniel Cadete, Iraci Antônio e Júlio Pedroso da Silva. Professor da Escola Estadual Indígena Fág Mág, na Terra Indígena Ligeiro, em Charrua (RS), Rogério agora trabalha com o livro na sua língua materna para ensinar alunos do 3º e 5º anos do ensino fundamental. Ele destaca a importância da obra diante da escassez de material pedagógico em línguas indígenas. Na escola bilíngue em que ele e seus quatro filhos também foram alfabetizados, há apenas outros sete livros escritos em kaingang. Os temas são ervas medicinais, comidas, músicas, histórias, caça, além de um dicionário e outro sobre o alfabeto.

“O trabalho de tradução foi uma experiência muito boa, porque esse livro vem pra ajudar nossas escolas. Temos muito pouco material didático escrito em kaingang. A história em si ajuda a entender que todos nós devemos cuidar da água. E ninguém melhor do que as comunidades indígenas para cuidar da natureza. Temos um projeto na escola para limpar os nossos rios. Vou adequando o conteúdo para cada turma”, ensina Rogerio Kagynh Antonio, de 46 anos, que, junto com os irmãos, faz parte da primeira geração da sua família a frequentar a universidade.

Capa da história em quadrinhos em kaingang sobre a preservação da água (Reprodução)

Ele é um dos 14 indígenas bolsistas de Ligeiro que quinzenalmente recebem formação  na aldeia com a professora Cherlei Marcia Coan, uma das autoras da HQ, junto com Dionei Ruã dos Santos, Lisandra Almeida Lisovski e Vanderléia Dartora. Também de 15 em 15 dias, os universitários se deslocam de ônibus até o campus da UFFS em Erechim, distante 60km da aldeia, onde têm aulas presenciais em regime de alternância.

Na HQ, a adolescente Maria Antônia é surpreendida com a falta de água para escovar os dentes antes de ir para a escola. Sua avó, de 90 anos, conta, então, que se trata da maior seca das últimas quatro décadas. Ela relembra que quando era jovem os rios da aldeia secaram, e nem tomar banho era possível. A estiagem serve de mote para a personagem e seus colegas de uma escola do campo – que também atende indígenas – discutirem alternativas sustentáveis, como a instalação de banheiros secos, o tratamento das águas cinzas e o armazenamento da água da chuva, entre outras.

“É realizada uma saída de campo abordando diferentes usos do espaço ao longo do rio”, explica Cherle. “Destaco o papel da mata ciliar na ciclagem de nutrientes, no aumento da porosidade do solo e da infiltração da água, seu funcionamento como filtro, retendo poluentes, agrotóxicos e sedimentos, sua atuação como corredor ecológico e proteção contra a erosão e assoreamento. Ressalto ainda a importância desse material para valorizar os acadêmicos indígenas kaingang do nosso curso, contribuindo para a valorização da sua identidade cultural”.

Projeto venceu edital da Capes com a ANA

O livro faz parte do projeto maior “Água como tema potencializador para o ensino de Ciências da Natureza em espaços do campo e da cidade”, proposta contemplada num edital da Capes em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA). Também foram elaborados os jogos didáticos de tabuleiro “Água e Sustentabilidade” para os ensinos fundamental e médio, além da HQ, que traz reflexões sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei das Águas e o papel dos Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas, como detalha Sinara Munchen, coordenadora do projeto e da LEDOC:

“Há poucos materiais em kaingang referentes às Ciências da Natureza, e como a água é uma temática relevante no contexto contemporâneo e também para a cultura indígena, foi possível articular conceitos de ciência, práticas sustentáveis e a língua kaingang”.

Professores da Universidade Federal da Fronteira Sul com os bolsistas indígenas: parceria pela preservação da água (Divulgação)

Algumas das situações do livro também foram inspiradas na vivência do professor Dionei Ruã dos Santos, um dos autores, e sua esposa, Priscila Giorgi. Eles moraram em ecovilas e visitaram aldeias indígenas que se utilizam de estratégias sustentáveis para o uso da água. Dionei acrescenta que a ideia também foi retratar histórias e personagens da vida real em formato de HQ, num enredo “semifictício”:

“Hoje, na nossa casa utilizamos alguns destes recursos (banheiro seco, tratamento das águas cinzas etc.) que serviram de exemplos para o desenrolar do enredo da história em quadrinhos, inclusive algumas imagens que estão no livro. O que vemos nos povos indígenas é mais profundo do que o uso de recursos, que é inclusive algo que temos que aprender com eles: o respeito com a natureza e a vida em harmonia com ela”.

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Lauro Neto

Carioca, mas cidadão do mundo. De carona na boleia de um caminhão ou na classe executiva de um voo rumo ao Qatar, sempre de malas prontas. Na cobertura de um tiroteio na cracolândia do Jacarezinho ou entrevistando Scarlett Johansson num hotel 5 estrelas em Los Angeles, a mesma dedicação. Curioso por natureza, sempre atrás de uma boa história para contar. Jornalista formado na UFRJ e no Colégio Santo Inácio. Em 11 anos de jornal O Globo, colaborou com quase todas as editorias. Destaque para a área de educação, em que ganhou o Prêmio Estácio em 2013 e 2015. Foi colunista do Panorama Esportivo e cobriu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016.

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