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Nada mais justo do que preservar não apenas a água, mas também a língua do terceiro maior povo indígena do Brasil, de acordo com o Censo de 2010. Dados mais recentes, do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi-2014), estimaram em mais de 45 mil a população de kaingangs nos três estados do Sul e em São Paulo. Na LEDOC, mais de 80% dos 127 alunos são indígenas. Seis deles participaram do trabalho de tradução do livro “Cuidar da água: responsabilidade de todos” durante um semestre do curso.
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Rogerio Kagynh Antonio foi um dos tradutores. Os outros foram Lenice Farias, Marizalda da Rosa, Daniel Cadete, Iraci Antônio e Júlio Pedroso da Silva. Professor da Escola Estadual Indígena Fág Mág, na Terra Indígena Ligeiro, em Charrua (RS), Rogério agora trabalha com o livro na sua língua materna para ensinar alunos do 3º e 5º anos do ensino fundamental. Ele destaca a importância da obra diante da escassez de material pedagógico em línguas indígenas. Na escola bilíngue em que ele e seus quatro filhos também foram alfabetizados, há apenas outros sete livros escritos em kaingang. Os temas são ervas medicinais, comidas, músicas, histórias, caça, além de um dicionário e outro sobre o alfabeto.
“O trabalho de tradução foi uma experiência muito boa, porque esse livro vem pra ajudar nossas escolas. Temos muito pouco material didático escrito em kaingang. A história em si ajuda a entender que todos nós devemos cuidar da água. E ninguém melhor do que as comunidades indígenas para cuidar da natureza. Temos um projeto na escola para limpar os nossos rios. Vou adequando o conteúdo para cada turma”, ensina Rogerio Kagynh Antonio, de 46 anos, que, junto com os irmãos, faz parte da primeira geração da sua família a frequentar a universidade.
Ele é um dos 14 indígenas bolsistas de Ligeiro que quinzenalmente recebem formação na aldeia com a professora Cherlei Marcia Coan, uma das autoras da HQ, junto com Dionei Ruã dos Santos, Lisandra Almeida Lisovski e Vanderléia Dartora. Também de 15 em 15 dias, os universitários se deslocam de ônibus até o campus da UFFS em Erechim, distante 60km da aldeia, onde têm aulas presenciais em regime de alternância.
Na HQ, a adolescente Maria Antônia é surpreendida com a falta de água para escovar os dentes antes de ir para a escola. Sua avó, de 90 anos, conta, então, que se trata da maior seca das últimas quatro décadas. Ela relembra que quando era jovem os rios da aldeia secaram, e nem tomar banho era possível. A estiagem serve de mote para a personagem e seus colegas de uma escola do campo – que também atende indígenas – discutirem alternativas sustentáveis, como a instalação de banheiros secos, o tratamento das águas cinzas e o armazenamento da água da chuva, entre outras.
“É realizada uma saída de campo abordando diferentes usos do espaço ao longo do rio”, explica Cherle. “Destaco o papel da mata ciliar na ciclagem de nutrientes, no aumento da porosidade do solo e da infiltração da água, seu funcionamento como filtro, retendo poluentes, agrotóxicos e sedimentos, sua atuação como corredor ecológico e proteção contra a erosão e assoreamento. Ressalto ainda a importância desse material para valorizar os acadêmicos indígenas kaingang do nosso curso, contribuindo para a valorização da sua identidade cultural”.
Projeto venceu edital da Capes com a ANA
O livro faz parte do projeto maior “Água como tema potencializador para o ensino de Ciências da Natureza em espaços do campo e da cidade”, proposta contemplada num edital da Capes em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA). Também foram elaborados os jogos didáticos de tabuleiro “Água e Sustentabilidade” para os ensinos fundamental e médio, além da HQ, que traz reflexões sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei das Águas e o papel dos Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas, como detalha Sinara Munchen, coordenadora do projeto e da LEDOC:
“Há poucos materiais em kaingang referentes às Ciências da Natureza, e como a água é uma temática relevante no contexto contemporâneo e também para a cultura indígena, foi possível articular conceitos de ciência, práticas sustentáveis e a língua kaingang”.
Algumas das situações do livro também foram inspiradas na vivência do professor Dionei Ruã dos Santos, um dos autores, e sua esposa, Priscila Giorgi. Eles moraram em ecovilas e visitaram aldeias indígenas que se utilizam de estratégias sustentáveis para o uso da água. Dionei acrescenta que a ideia também foi retratar histórias e personagens da vida real em formato de HQ, num enredo “semifictício”:
“Hoje, na nossa casa utilizamos alguns destes recursos (banheiro seco, tratamento das águas cinzas etc.) que serviram de exemplos para o desenrolar do enredo da história em quadrinhos, inclusive algumas imagens que estão no livro. O que vemos nos povos indígenas é mais profundo do que o uso de recursos, que é inclusive algo que temos que aprender com eles: o respeito com a natureza e a vida em harmonia com ela”.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]55/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil
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