Todos os municípios do país poderão ser obrigados a lançar um edital público e fazer licitação antes de contratar uma empresa para cuidar do saneamento. A determinação faz parte de uma medida provisória (MP) posta em discussão recentemente pelo Ministério das Cidades. A princípio a ideia parece boa. Afinal, uma boa concorrência nunca é demais. Mas ela vem gerando controvérsia e dividindo os especialistas no tema. O problema está no chamado “subsídio cruzado”. Ou melhor, no risco de que ele venha a acabar.
[g1_quote author_name=”Ana Lucia Britto” author_description=”Pesquisadora da UFRJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A proposta impede que um município coopere com outro ente público, para que haja a prestação direta (pelas prefeituras), o que pode levar a uma privatização forçada
[/g1_quote]Hoje, de acordo com a lei 11.445, cidades atendidas por companhias públicas, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, não precisam fazer licitação para escolher quem vai coletar e tratar o seu esgoto. Empresas como a Cedae, a Sabesp e a Sanepar, respectivamente, fazem esse serviço há anos. Ele é bom? Não necessariamente. Acontece que o contrato da Cedae com o Rio de Janeiro é que garante o atendimento aos outros 63 municípios do Estado. Sem a capital, a Cedae quebra. Esse é o subsídio cruzado. Se cada cidade fizer a sua licitação, a tendência é que as empresas públicas e privadas se candidatem apenas para cuidar das áreas rentáveis. Os outros municípios, deficitários, ficariam sem o serviço ou seriam atendidos por empresas públicas depauperadas.
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Veja o que já enviamosDe acordo com Ernani Ciríaco de Miranda, diretor do Departamento de Planejamento e Regulação da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, do Ministério das Cidades, o objetivo do governo é “ampliar a participação do setor privado”. No entanto, já se manifestaram formalmente contrários a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae) e a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe). Todos enviaram nota ao Ministério das Cidades solicitando a exclusão do artigo 10-A, referente a essa regra.
Conforme diz esse artigo da MP, o objetivo é “angariar a proposta mais eficiente e vantajosa para a prestação descentralizada dos serviços públicos de saneamento”. Na prática, porém, coloca em risco a prestação do serviço em municípios sem atrativos para a iniciativa privada. O governo já sinaliza com uma possível alteração no texto.
Na visão da Assemae, o saneamento não pode estar à mercê dos interesses da iniciativa privada. Para a entidade, a proposta “é um ataque ao sistema público de saneamento básico, já que a iniciativa privada deve se interessar apenas pelos municípios superavitários, fazendo com que as companhias públicas tenham de assumir apenas a operação dos lugares mais problemáticos”.
Essa linha de raciocínio é similar entre os contrários à proposta. “Induz as operadoras públicas e privadas a competir apenas por municípios superavitários, deixando os deficitários ao encargo dos municípios e estados. Dessa maneira, dificulta a prestação do serviço de forma regionalizada e, ao dificultar a prática de subsídios cruzados, agrava as diferenças na qualidade e na cobertura dos serviços, com prejuízo para a população mais carente”, alerta o documento da Abes enviado ao governo.
Especialista no tema, Ana Lucia Britto, professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Prourb/UFRJ), afirma que esse artigo da MP é uma indução à privatização. “O chamamento público pode obrigar o município a conceder à empresa privada a prestação de um serviço público. A proposta impede que um município coopere com outro ente público, para que haja a prestação direta (pelas prefeituras), o que pode levar a uma privatização forçada”, avalia ela, que também é pesquisadora do Observatório das Metrópoles.
Em resumo, esse caminho pode provocar outros problemas, como a manutenção ou ampliação das desigualdades no acesso aos serviços. Se a capital do Rio de Janeiro, por exemplo, promover tal concorrência e a iniciativa privada ganhar a licitação, a oferta dos serviços nos outros 63 municípios atendidos atualmente pela Cedae estaria imediatamente ameaçada, pois 77,5% da receita bruta da estatal advêm da capital, segundo balanço da companhia de 2016. Em resumo, o faturamento obtido na capital sustenta os déficits registrados em vários municípios fluminenses.
Miranda diz que a proposta “deve ser aprimorada”, mas rebate a crítica de que o governo federal esteja querendo induzir a privatização. “Pelo contrário, é uma política de incentivo aos investimentos num setor que, historicamente, só recebe recursos dos governos. O governo está ciente de que para cumprir as metas do Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) e alcançar a universalização do acesso aos serviços públicos precisa estimular os investimentos privados no setor e aumentar a competitividade para que, além da universalização, os serviços tenham maior qualidade”, esclarece.
Lançado em 2013, o Plansab previa a universalização dos serviços de água e esgoto no país até 2033, mas os avanços têm ocorrido em um ritmo bastante lento. Além da MP com mais de 50 artigos, outras mudanças nos marcos legais do saneamento e dos recursos hídricos estão em discussão também pela Agência Nacional de Águas (ANA). A intenção do órgão é lançar novas regras para o setor no 8º Fórum Mundial da Água, marcado para março de 2018 em Brasília. Na ocasião, ocorrerá em paralelo o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), organizado pela sociedade civil como um contraponto ao evento oficial.