‘Marco regulatório do saneamento tem texto de baixa qualidade’

Especialista em legislação ambiental, Wladimir Antonio Ribeiro afirma que governo poderia induzir melhorias no saneamento sem alterar a legislação

Por Emanuel Alencar | ODS 6 • Publicada em 14 de dezembro de 2019 - 12:02 • Atualizada em 12 de março de 2020 - 20:49

De 2010 a 2017, o Brasil gastou mais de R$ 1,1 bilhão em internações com doenças provocadas pela falta de saneamento. Numa média aproximada de R$ 140 milhões por ano. Foto Trata Brasil
De 2010 a 2017, o Brasil gastou mais de R$ 1,1 bilhão em internações com doenças provocadas pela falta de saneamento. Numa média aproximada de R$ 140 milhões por ano. Foto Trata Brasil
De 2010 a 2017, o Brasil gastou mais de R$ 1,1 bilhão em internações com doenças provocadas pela falta de saneamento. Numa média aproximada de R$ 140 milhões por ano. Foto Trata Brasil

Na noite da última quarta-feira (11), enquanto a Câmara dos Deputados aprovava, em primeira discussão, o texto-base do novo marco regulatório do saneamento básico, nas redes sociais partidários de maior participação das empresas privadas e defensores de modelos estatais iniciavam (mais um) ruidoso debate. Na opinião de um dos maiores especialistas em legislação sobre saneamento do país, o paulistano Wladimir Antonio Ribeiro, 51, o foco deveria ser outro: a supervisão regulatória dos serviços de água e esgoto. “É preciso evitar conflitos e divergências que em nada contribuem para a segurança jurídica e os investimentos”, disse ao #Colabora. “(O governo) adotou o caminho mais simbólico de se alterar a legislação. O resultado parece indicar um texto legal de muito baixa qualidade técnica”, critica.

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Numa análise criteriosa do PL 4.162, que põe iniciativa privada e empresas públicas de saneamento com as mesmas condições de concorrência, o advogado se surpreende ao encontrar um dispositivo que acaba por dificultar a vida das companhias privadas, e enxerga uma série de problemas jurídicos. Para Wladimir, a pressão por investimentos das companhias privadas fará com que haja aumento das tarifas, onerando ainda mais os cidadãos, “que já sofrem muito com a crise econômica”.

Wladimir Antonio Ribeiro: “É preciso evitar conflitos e divergências”. Foto Divulgação

O texto seguirá para o Senado, que poderá fazer modificações, emendas. Mas a Câmara dará a palavra final sobre o assunto antes da sanção do presidente Jair Bolsonaro – uma manobra articulada por Geninho Zuliani (DEM-SP).

#COLABORA – O senhor cita que o novo texto do marco legal do saneamento pode dar margem a novas contendas judiciais. O ponto central é: em sua avaliação, o marco até então em vigor (11.445/07) precisava ser atualizado?

Wladimir Antonio Ribeiro – A grande questão é que boa parte das companhias estaduais se acomodou e tinham um mercado cativo. Muitos municípios não tinham investimentos e tinham grande dificuldade de fazer uma outra opção para a prestação de serviços.  Evidente que havia várias formas para se enfrentar este problema. Creio que uma intervenção mais eficiente seria o governo federal induzir isso com os meios e recursos que possui. Porém, se adotou o caminho mais simbólico, que é alterar a legislação. O resultado parece indicar um texto legal de muito baixa qualidade técnica. Mas o processo teve o mérito de colocar o saneamento básico na pauta dos debates da sociedade brasileira.

#COLABORA – Ainda está bastante nebulosa como será a atribuição da ANA, como reguladora máxima do saneamento. Há resistências. O PL aprovado, em primeira discussão, dá alguma pista de como ficará essa atribuição?

Wladimir – Na realidade, o que ocorreu é que uma boa ideia, que é a supervisão regulatória, acabou tomando um formato inadequado. A proposta inicial, até feita por mim em estudo encomendado pelo governo federal, inspirado em experiência internacional, era a de que a União induzisse a melhoria da regulação. De modo indireto, por meio de incentivos, apoio aos reguladores e disseminação de melhores práticas e normas de referência. Contudo a ideia inicial foi deturpada para tentar impor uma regulação a partir de Brasília, detalhada, ignorando os reguladores e as realidades locais. Aguardamos o resultado deste processo, com a esperança de que se volte ao bom caminho. É preciso evitar conflitos e divergências que em nada contribuem para a segurança jurídica e os investimentos.

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Prever meta em lei é tecnicamente errado. O correto é isso ser definido, de forma detalhada e fundamentada, no Plano Nacional de Saneamento Básico. Trata-se de mera medida retórica, sem qualquer estudo de viabilidade. O país é diverso, e em boa parte do Brasil a meta de 90% de coleta e tratamento de esgoto é inviável.

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#COLABORA – O texto prevê que deverá ser alcançada a meta de 90% da coleta e tratamento de esgoto até 2033, bem como de 99% da cobertura de água. Parece claro que isso implicará aumentos significativos de tarifas, sem que a maior parte da população consiga pagar. É uma preocupação?

Wladimir – Prever meta em lei é tecnicamente errado. O correto é isso ser definido, de forma detalhada e fundamentada, no Plano Nacional de Saneamento Básico. Trata-se de mera medida retórica, sem qualquer estudo de viabilidade. O país é diverso, e em boa parte do Brasil a meta é inviável. Por outro lado, a lei prevê a obrigação e não indicou de onde virão os recursos. Porém, com a pressão por investimentos, o aumento das tarifas será inevitável, onerando ainda mais os cidadãos, que já sofrem muito com a crise econômica.

#COLABORA – A modelagem da concessão de serviços da Cedae, no Rio, feita pelo BNDES, prevê blocos de municípios de diferentes regiões hidrográficas (mais ricos com mais pobres) para garantir o subsídio cruzado. Por exemplo, o Norte Fluminense junto com bairros como Botafogo e Flamengo. Isso pode funcionar?

Wladimir – Sim, pode funcionar. Porque, na verdade, se reduziu em pedaços menores o subsídio cruzado [uma classe paga mais para garantir serviços a consumidores que não têm condições de pagar] hoje estabelecido em todo território do Estado. A questão é que não ficou claro com quem ficam os custos de desmobilização da Cedae. Porque as receitas da venda da empresa podem parecer vantajosas a curto prazo. Mas podem não ser suficientes para amortizar o passivo que ficará com Estado.

#COLABORA – O caso de Manaus, que concedeu seus serviços de água e esgoto há 20 anos, é emblemático pela ausência de avanços. Em sua avaliação faltou regulação? O caso é um alerta aos que defendem o privatismo de qualquer maneira?

Wladimir – Quando contrata uma concessão com o privado, ou mesmo com uma companhia estadual, os municípios têm a falsa noção de que o serviço não é mais de sua responsabilidade, e nada fazem para acompanhar e fiscalizar o contrato. Isso é errado. Um contrato tem duas partes: o contratante e o contratado. É fundamental que o município exerça bem a sua posição de contratante, para gerar o equilíbrio. O exemplo de Manaus mostra que um contrato mal modelado causa enormes prejuízos e, ainda, que os serviços não avançam quando o município não exerce a contento a sua posição de contratante e fiscalizador. Essas funções exigem organização e recursos adequados, inclusive com a estruturação de um regulador técnico e independente.

#COLABORA – Nesta quinta, correram nas redes sociais reclamações quanto “à privatização da água”. Você acredita que o novo marco legal pode levar à privatização das captações da água ou é um temor exagerado?

Wladimir – Claro que é um exagero. O serviço continuará público, porém executado por empresa privada. Daí a necessidade de melhorar a regulação e a fiscalização.

#COLABORA – O senhor aponta algo curioso no texto aprovado, que seguirá para o Senado: a previsão de que somente após pagar a indenização pelos investimentos não amortizados, o município pode retomar os serviços de água e esgoto. Isso não é justamente dificultar a vida do setor privado?

Wladimir – De fato, este dispositivo da proposta é até estranho, porque prejudica a participação privada. Calcular e pagar esta indenização demorará anos e, durante este tempo, a companhia estadual permanecerá nos serviços, sem obrigação de investimentos. Muito estranho para uma proposta cujo objetivo seria aumentar a participação privada no saneamento.

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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