Catadores enfrentam preconceito, miséria e insegurança

Fabiana Silva, catadora autônoma, nas ruas de São Paulo: pesquisa mostra que trabalhadores enfrentam preconceito e pobreza (Foto: Martha Cooper / Pimp MY Carroça)

Pesquisa em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte ajuda a traçar perfil de quem vive de recolher lixo e outros resíduos urbanos

Por Amelia Gonzalez | ODS 6 • Publicada em 23 de novembro de 2022 - 11:59 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 20:03

Fabiana Silva, catadora autônoma, nas ruas de São Paulo: pesquisa mostra que trabalhadores enfrentam preconceito e pobreza (Foto: Martha Cooper / Pimp MY Carroça)

Uma das metas que os chefes de nações reunidos no Egito durante a COP27 impuseram para a nossa civilização é zerar as emissões de carbono no mundo até 2050. Tarefa nada fácil de ser cumprida, como sabemos. Uma das soluções, no entanto, pode estar em melhorar a gestão de resíduos sólidos urbanos, o que nos leva a pensar numa mudança de produção e consumo. E no lixo que produzimos.

Catadores e catadoras de resíduos sólidos arrastando suas carroças ou carregando sacolas plásticas nas costas hoje fazem parte do cenário urbano, sobretudo nas grandes cidades. E se tornam, assim, parte da solução.

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No Brasil, existem 281 mil catadores informais, segundo dados estatísticos divulgados em 2021 pela organização Wiego. Das 32 mil pessoas que vivem em situação de rua na cidade de São Paulo, 27% coletam materiais recicláveis e esta é sua principal fonte de renda, segundo um levantamento feito em junho deste ano por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Quem são essas pessoas que vivem de coletar os resíduos deixados pelos habitantes de grandes cidades? Quais são os desafios que elas enfrentam no dia a dia de trabalho?

Foi pensando em compreender melhor os cenários sociais em que catadoras e catadores estão inseridos e provocar a visibilidade deles para a sociedade, que os movimentos sociais Cataki e Pimp my Carroça fizeram um estudo em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, divulgado esta semana: 67%dos entrevistados se dizem vítimas de preconceito, enquanto 63% afirmam que são vigiados de perto por seguranças o tempo em que estão em suas tarefas; em São Paulo, dois em cada dez tiveram seu instrumento de trabalho apreendido pela Prefeitura.

Nas três capitais, a grande maioria são homens; 51% se declaram pardos e 25% pretos. A maioria tem entre 40 e 59 anos e apenas 10% estão na terceira idade. Cerca de 30% dos entrevistados entraram na catação por causa do desemprego e outras situações de vulnerabilidade; 12% por influência familiar.

A Pesquisa Cataki 2022 foi realizada entre março e junho de 2022, sob formas quantitativa e qualitativa. Na quantitativa, foram ouvidos 421 catadores, e na qualitativa os pesquisadores acompanharam dez catadores durante meio dia de trabalho de cada um.

Para 69% dos entrevistados, ser catador é a única opção de trabalho “Estamos falando de um pessoal que está majoritariamente na economia informal e se torna quase invisível para a maioria da população mas, ao mesmo tempo, resolve uma parte da questão dos resíduos. Nossa ideia foi conseguir trazer visibilidade para este público de catadores e catadoras que só aparecem no Produto Interno Bruto (PIB) quando conseguem vender e o volume gigante de reciclados que eles catam são vendidos pelos ferro-velhos, que emitem nota fiscal por eles”, contam Carlos Thadeu de Oliveira, especialista em advocacy, e Milena Tobias, coordenadora de comunicação do Pimp my Carroça e Cataki.

Segundo os pesquisadores, não deve ser novidade para ninguém que a maior parte do(a)s catadore(a)s nas grandes cidades é vulnerável socialmente. Mas, trazer isto em números “é muito importante porque sai do senso comum e entra numa coisa mais concreta, para se cobrar políticas públicas e conseguir que as empresas se voltem também para este público”.

Catadores autônomos do grupo Maladeza, recolhem lixo em Belo Horizonte: carroças são decisivas para melhora na renda (Foto: Julia Nagle / Pimp My Carroça)
Catadores autônomos do grupo Maladeza, recolhem lixo em Belo Horizonte: carroças são decisivas para melhora na renda (Foto: Julia Nagle / Pimp My Carroça)

O papel do poder público

99% dos produtos que compramos são jogados fora depois de seis meses de uso. Este percentual fica ainda mais surpreendente porque faz parte de um estudo lançado pelas Nações Unidas em 2018, quando ainda éramos 7,6 bilhões de habitantes no mundo e produzíamos dois bilhões de toneladas de resíduos por ano. Quatro anos depois, e já com a cifra de 8 bilhões de pessoas vivendo no planeta, é possível que esses dados sejam ainda mais grandiosos.

O que não muda é a persistente indiferença da maioria da população ao problema. É como se, de fato, o ato de jogar o saco de lixo pela lixeira do prédio ou deixá-lo à porta de casa eximisse de responsabilidade o produtor de lixo. A partir do momento de descarte, outros se tornam donos do problema. Ou da solução. A esses, no entanto, também é estendida a desatenção.

Cataki e Pimp My Carroça são duas ações que foram criadas em 201 pelo artista de rua Mundano, exatamente com a proposta de trazer à tona esses personagens da cena das cidades. E ajudá-los. No site há também possibilidade de ganhar apoios de pessoas físicas ou jurídicas.

E o poder público, a quem deveria interessar diretamente uma parte da solução oferecida pelos catadores e catadoras? “A maioria das prefeituras enxerga isso como um problema isolado, ou querem uma solução fácil: abre licitação, contrata uma empresa pra fazer coleta seletiva. Não temos uma parceria a longo prazo com o poder público. Temos tentado uma conversa com o governo de São Paulo na tramitação de um projeto de lei que possa incluir catadores autônomos, mas a conversa foi interrompida com as eleições. Por outro lado, também pretendemos aproveitar a nova oportunidade com o governo do presidente eleito Lula da Silva, que historicamente abriu portas para os catadores”, disse Carlos Thadeu.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, assinada pelo então presidente Lula em 2010, determina que cooperativas e associações de catadores devem ser incluídas nas operações de coleta seletiva dos municípios. Mas, segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), de 2017, hoje apenas 37% da população brasileira têm acesso à coleta seletiva. E, muitas vezes, os índices de reaproveitamento e reinsercação dos resíduos não chega a 50%, conforme atestam os pesquisadores do Cataki.

“Um catador faz mais do que um ministro do meio ambiente”: mensagem na carroça de atadores autônomos em São Paulo (Foto: Mundano / PImp MY Carroça)

A importância da ferramenta de trabalho

Na amostra feita pelos pesquisadores, 68% dos catadores têm renda inferior a R$ 1 mil por mês: 43% em São Paulo; 59% em Belo Horizonte e 75% no Rio de Janeiro possuem renda familiar de até R$ 1 mil. Os outros 32% têm renda mensal acima de R$ 1 mil e, em alguns casos, pode chegar a R$ 2.500, de acordo com a pesquisa.

Essa renda é obtida quando o catador deixa de coletar apenas usando uma sacola plástica ou um carrinho de supermercado e consegue uma carroça, ferramenta de trabalho que pode melhorar bastante a vida dele. “Nós, no Cataki, fizemos uma lista só em São Paulo e descobrimos ao menos cem catadores e catadoras que necessitam de uma carroça para conseguirem coletar mais materiais. Com uma carroça, o(a) catador(a) consegue pegar 400 quilos de material por dia e fazer uma renda de 1,5 mil por mês. Cada carroça custa, em média, R$ 2 mil, e para isto precisaremos arrecadar R$ 200 mil”, disse Milena Tobias.

Para os pesquisadores, foi difícil chegar aos catadores que usam sacolas plásticas. Eles conseguiram conversar com aqueles que usam carrinhos de supermercado, ou seja, já saíram da vulnerabilidade extrema e têm um veículo de quatro rodas para ajudá-los. O catador ou a catadora que tem apenas a sacola plástica para carregar o que coleta, ganha cerca de R$ 10,00/dia, vende direto no ferro-velho e costuma usar este dinheiro para comprar comida. A maioria dos catadores nas três cidades pesquisadas está em situação de rua ou dorme em albergues, abrigos ou casas de acolhimento.

Joaquim, catador autônomo em São Paulo, com a camisa do Cataki: aplicativo para ajudar na economia circular (Foto: Vincent Bosson / Pimp My Carroça)

A força do aplicativo

Para a Cataki/Pimp my Carroça, a divulgação da pesquisa também vai ajudar a implementar uma ação criada pelos movimentos: um aplicativo para os catadore(a)s. “Nosso grande objetivo é contribuir para que o ecossistema – geradores de resíduos, pontos de comercialização, catadores parceiros e empresas poluidoras – se beneficiem das oportunidades geradas pela economia circular e pelas tecnologias sociais que criamos e aplicamos”, diz a pesquisa.

Um entrave para isto é que, para usar o aplicativo, o catador ou a catadora precisa ter um aparelho de celular. Carlos Thadeu e Milena Tobias entendem que esta pode ser uma oportunidade para que as empresas, por exemplo, interessadas em reciclar seus resíduos, doem telefones celulares para essas pessoas. “Se a empresa quiser incluir pelo menos cem, 200 catadores de uma vez nos aplicativos, para ela é doar cem celulares básicos. Um chip. Não é uma coisa gigante”, disse Milena Tobias.

Em São Paulo há 1.767 catadores cadastrados no Cataki. Este número baixa para 142 no Rio de Janeiro e 133 em Belo Horizonte. Dos 421 ouvidos na pesquisa, 156 eram participantes do Cataki, e fica claro, pelos dados coletados, que o aplicativo realmente ajuda muito o(a) catador (a).

Quem usa o aplicativo tem um nível de escolaridade maior, o que parece óbvio pelo fato de conseguir perceber a importância do dispositivo. Os não cadastrados, por outro lado, são mais vulneráveis em termos habitacionais: apenas 26% deles têm imóvel próprio ou alugado. Enquanto que, para os que têm cadastro, esta porcentagem sobe para 56%.

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.

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Um comentário em “Catadores enfrentam preconceito, miséria e insegurança

  1. Observador disse:

    Duas situações deles que faz a gente refletir o caos econômico brasileiro: coletam 14/15 horas por dia para no final receber alguns reais, algumas moedas! Com “Direitos Humanos dados aos Cavalos”: Os Humanos puxam o carro com recicláveis e tem que capinar terrenos baldios, já que nas antigas carroças quando paradas, os cavalos pastavam!

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